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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

De vez em quando surge-me nos lábios

De vez em quando surge-me nos lábios

Uma canção de amor e, instintivo,

Nela choro unia amada morta. Sim.

É a noiva eterna morta de um eu

Que não soube amar.

                                Ah que feliz

Seria se eu pudesse aniquilar

O pensamento, a comoção — o que eu

Mais odeio e mais prezo — e m'envolver

Numa vida vazia e trabalhosa,

Com amores, ternura! Beberia

A alegria do regalo de existir

Sem perguntar onde era a sua origem

Nem onde tinha fim. Felicidade

Fez-se para quem a não pode sentir.

Completo e apreensível horror

Do mistério que eis volta ao pensamento!

Hoje se morre alguém que estimo — se eu

Estou ainda algo em mim absorto

No que é mais do que eu — se morre alguém

Que amo — admitamo-lo — já não choro,

Não sinto dor: gela-me apenas, muda,

A presença da morte que triplica

O sentimento do mistério em mim.

s.d.

Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.

 - 88.

1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p.131).