[Cartas a João Gaspar Simões - 14 Dez. 1931]
Apartado 147.
Lisboa, 14 de Dezembro de 1931.
Meu querido Gaspar Simões:
Como, quando escrevo cartas à máquina, que é sempre que são extensas, ou importa que sejam claras, ou à máquina, tiro, a papel químico, a cópia que não custa
tirar, estive agora a reler a que lhe escrevi na sexta-feira e lhe expedi no sábado de manhã, registrada, para que se não perdesse.
Depois de reler, desejo fazer uma leve emenda e um acréscimo. A carta foi escrita, como nela mesmo lhe disse, com a velocidade que a máquina permitia, e por isso me escapou uma reserva ou restrição num ponto, e me esqueceu por completo mencionar outro ponto. O primeiro caso tem mais importância que o segundo.
Onde, falando da influência no Sá-Carneiro da morte prematuríssima da mãe, refiro que a ausência da ternura propriamente humana na obra dele é devida a isso, assim como a introversão de ternura que nele havia, deveria ter exposto melhor, porque não é inteiramente assim. No primeiro caso está bem; no segundo não o está inteiramente. Onde a introversão da ternura é dada (por exemplo) por
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...
é deveras a substituição da ternura própria à ternura materna nunca havida. Mas onde o tom é
Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
....................................................
Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas para se dar...,
o caso é outro, e o movimento mental tem outra origem, que é, suponho, inútil que especifique. Reforça-se do primeiro tipo de introversão, mas não procede intimamente dele.
O que me esqueceu por completo mencionar é o caso da referência que fiz no meu Interregno a ser aquele folheto escrito de maneira que ninguém mais o poderia escrever, ou qualquer coisa neste sentido, de que me claramente não recordo. V. tomou isto como uma espécie de nota de narcisismo; já o fez em Temas , e agora repetiu-o em O Mistério da Poesia. É perfeitamente legitimo que v. o fizesse, porque a frase lá está. O pior é que ela se explica de uma maneira diferente. A frase pertencia ao Interregno na sua forma original de manifesto anónimo. O Ministério do Interior impediu a saída do manifesto, a não ser que viesse assinado e convertido em livro – isto é, folheto –, pois assim não era (então) preciso ir à censura, que, tendo sido consultada sobre o manifesto, pusera várias objecções à sua saída. Na revisão que fiz, de muito mau humor, pois me aborreceu muito tudo aquilo das autoridades, esqueci-me de tirar essa frase, que, sendo uma insolência de blague no manifesto anónimo, é nem mais nem menos que uma nota de mau gosto – género Shaw ou D'Annunzio – no folheto assinado. Mais nada. Sou absolutamente incapaz de escrever, directa e deliberada-mente, uma frase daquela ordem em circunstâncias que não sejam as de um lapso, como as que cito. Tenho empenho em acentuar-lhe isto, não para me esquivar à atribuição de narcisismo (que não é das coisas mais características do meu espírito – mas isso, enfim, não discuto), mas para me não deixar ter por culpado de uma nota de mau gosto e de falta de educação que, na verdade, não deliberei. É uma gaffe , se v. quiser (e quererá bem, porque o é), mas não é a má-criação narcisista que, sem esta explicação, se poderia supor.
Sempre e muito seu,
Fernando Pessoa.
Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões. (Introdução, apêndice e notas do destinatário.) Lisboa: Europa-América, 1957 (2.ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982).
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