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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Álvaro de Campos

Hoje que tudo me falta, como se fosse o chão,

Hoje que tudo me falta, como se fosse o chão,

Que me conheço atrozmente, que toda a literatura

Que uso de mim para mim, para ter consciência de mim,

Caiu, como o papel que embrulhou um rebuçado mau —

Hoje tenho uma alma parecida com a morte dos nervos

Necrose da alma,

Apodrecimento dos sentidos.

Tudo quanto tenho feito conheço-o claramente: é nada.

Tudo quanto sonhei, podia tê-lo sonhado o moço de fretes.

Tudo quanto amei, se hoje me lembro que o amei, morreu há muito.

Ó Paraíso Perdido da minha infância burguesa,

Meu Éden agasalhando o chá nocturno,

Minha colcha limpa de menino!

O Destino acabou-me como a um manuscrito interrompido.

Nem altos nem baixos — consciência de nem sequer a ter...

Papelotes da velha solteira — toda a minha vida.

Tenho uma náusea do estômago nos pulmões.

Custa-me a respirar para sustentar a alma.

Tenho uma quantidade de doenças tristes nas juntas da vontade.

Minha grinalda de poeta — eras de flores de papel,

A tua imortalidade presumida era o não teres vida.

Minha coroa de louros de poeta — sonhada petrarquicamente,

Sem capotinho mas com fama,

Sem dados mas com Deus —

Tabuleta [de] vinho falsificado na última taberna da esquina!

9-3-1930

Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.

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