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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

No número de hoje do jornal, que V. Ex.ª superiormente dirige,

No número de hoje do jornal, que V. Ex.ª superiormente dirige, inseriu um “Mário” pseudónimo umas notas curiosas sobre a relação entre a personalidade do Imperador Guilherme Segundo e a Besta apocalíptica, o Anticristo da profecia. A relação, segundo este autor, é de identidade. O argumento numerológico, com que o prova, é curioso, como curiosos são, a par dele, outros argumentos da mesma índole e idêntica tendência, que vários escritores do estrangeiro, franceses e sobretudo ingleses, têm trazido para a publicidade.

Por curiosos que sejam, porém, esses argumentos, e patente que se afigure a identidade estabelecida por eles, importa, creio, que se lhes contraponha uma consideração que o acurado estudo do assunto e a exacta medição do tema necessariamente estabelecem.

O imperador Guilherme carece de estatura psíquica para que possa ser contraposta a Cristo, em qualquer sentido da contraposição.

No Anticristo dos profetas, embora a sua natureza e modo de aparecimento se discutam, são essenciais três condições. Há-de ser, em primeiro lugar, conscientemente o Anticristo; não basta que obre como se supõe que deva obrar o Anticristo — há-de apresentar se como o inimigo de Cristo ao obrar como tal. Como Cristo é, essencialmente, uma força espiritual, o Anticristo há-de ser, em segundo lugar, uma força espiritual também; por onde se vê que a alusão aos seus exércitos (se assim a profecia se aplica) não se deve entender de exércitos de soldados, mas de fiéis, não de uma guerra no espaço onde estão os corpos, mas no tempo onde estão as ideias. E como Cristo é o representante da Intuição ou do Sentimento, como guia e norte da Vida, o Anticristo deve ser o representante da Inteligência, que é o inimigo do Sentimento. Isto entendem os ocultistas, quando dizem de Cristo que ele é fêmea, porque o Sentimento é, na figuração dos Rosa-Cruz, entendido como feminino, e esquerdo. Nem outro sentido tem a atribuição ao anjo rebelde de o nome de Lúcifer, o que Traz a Luz, símbolo patente da Inteligência. Sabem também os versados nestes assuntos esconsos que o número 666 era significador da “Inteligência Material”, que é como se designava a inteligência baseada nos processos extramísticos, isto é, na análise, na experiência e no raciocínio — a Inteligência científica, portanto, ou na verdade, a Inteligência propriamente dita.

Em terceiro lugar, o Anticristo deve ter uma estatura espiritual condigna com o Mestre, a quem se opõe. Não deve ser, por uma casualidade, ou por uma mera consequência, autor de danos e de males para o cristianismo. Deve ser comparável a Cristo na sua grandeza, embora se entenda que emprega para mal essa grandeza.

O pobre Imperador Guilherme, que nem tem a estatura, parca já para a comparação com Cristo, de um Cromwell ou de um Napoleão, a nenhuma destas condições satisfaz.

A conta feita por o seu correspondente está, por igual, errada : [...] Kaiser.

É com efeito certa a data marcada pelo profeta. Mas não é da Alemanha que vem o Anticristo. Aquele país que lançou os Navegadores pelo mar fora, e começou o seu direito à existência na civilização pela obra, essencialmente de Inteligência, das descobertas — esse país o há-de lançar ao mundo. Tal é o verdadeiro sentido, aqui pela primeira vez revelado (porque a Hora se aproxima) do «Regresso do Rei Sebastião», que a mística popular até agora se enganou em tomar apenas (porque também o é) como símbolo do renascimento da Pátria.

Todo o estudioso do ocultismo sabe que, além de se representar por Lúcifer, a Inteligência se representa, ainda mais comummente, por A SERPENTE. Porque é então que Portugal é figurado apenas como A SERPENTE nas estrofes do Bandarra. Será apenas por se lhe atribuir a regência serpentina da cauda do Sagitário, signo que impera sobre as Espanhas? Não será mais oculta a atribuição do nome?

A advertência fica feita [...]

s.d.

Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Fernando Pessoa (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1979.

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