A POESIA NOVA EM PORTUGAL
A POESIA NOVA EM PORTUGAL
José Régio
Adolfo Casais Monteiro
Alberto de Serpa
Marques Matias
Por poesia nova, no sentido em que aqui tratarei dela, não entendo poesia de jovens — a palavra “novos opõe-se a “antigo” que não a “velho” — , mas poesia que representa novidade, sequer em seu íntimo conteúdo, quer em sua expressão e os modos dela.
Não me ocuparei, pois, dos que, jovens ou não, mas recém-aparecidos na publicação, se servem de formas antigas ou versam, ainda que de um modo novo, temas tradicionais. Por isso não tratarei, por exemplo, dos admiráveis poetas — que por mal conhecidos bem o mereceriam — que são Marta Mesquita da Câmara e Francisco Costa.
De um poeta, e dos melhores, que legitimamente figura entre os novos, também não falarei. Trata-se de António Botto. Acerca [d]ele tenho escrito com tal abundância de análise e definição, que me dispenso de repetir aqui, em condensação forçosamente mutilada (microscópica) o que sobre ele já disse extensa, mas, conforme meu uso, condensadamente.
Não tratarei senão dos novos poetas que têm livros publicados; fazer o contrário, além de desorientar o leitor com referências a revistas ou jornais praticamente inacháveis, além de dar a este artigo uma extensão que não pretendo que ele tenha, envolver-me-ia no risco de várias omissões. Bastam as que porventura eu cometa, involuntariamente é certo, por ignorância de livros de poetas que legitimamente caibam no género ou espécie que determina o enquadramento do meu artigo.
Para efeitos, pois, do estudo presente, proponho-me considerar, com a brevidade e a concisão que uma análise suficiente consinta, as obras em verso, até hoje publicadas em livro, dos seguintes novos poetas: José Régio, Adolfo Casais Monteiro, Adolfo Rocha (Miguel Torga), Alberto de Serpa, Marques Matias. A ordem por que ponho os nomes é a por que me vão ocorrendo, e por essa ordem, tão boa como qualquer outra, os irei tratando no decurso deste escrito. Não implica, nem pretende implicar, uma opinião comparativa dos méritos dos poetas criticados. A todos acho mérito, pois, se o não achasse, os não criticaria. Mas, ainda que fosse teoricamente possível (e nunca é) ou que fosse de bom gosto (e nunca seria) estabelecer tal escala ou gradação de méritos, inibir-me-ia de o fazer o estarem, para mim, quase todos esses poetas ainda em período de formação. Se isso torna impossível — e ver-se-á que o não tento — definir-lhes absolutamente as personalidades, tornaria muito mais impossível (passe a frase ilógica) o definir-lhas relativamente (comparativamente). Disse eu desses poetas quase todos; direi, com mais propriedade, todos menos um. Refiro-me a José Régio. Este poeta está, a meu ver, já inteiramente formado e definido, tanto quanto qualquer de nós o está enquanto vive. Esse poeta é, a meu ver, em parte por isso e em parte por simples mérito, o melhor de todos eles.
O caso particular de abrir eu a lista por esse poeta representa pois uma excepção no meu critério geral. Considero José Régio, em todos os sentidos, primus inter pares.
Isto posto, entro no assunto. Começarei por observações definidoras do espírito geral do que chamei “poesia nova”. Feitas elas, e eliminado assim o que de comum têm os poetas que citei, poderei, sem repetições inúteis, passar, seriatim, ao estudo concreto de cada um deles (dos poemas de cada um deles).
A poesia nova — no sentido em que aqui uso e usarei do termo — pode designar-se tal: 1) em virtude do conteúdo; 2) em virtude da forma, entendendo-se por “ forma”, não o simples ritmo ou estrutura externa, mas o conjunto dos factores cujo produto é a expressão; 3) em virtude de ambas as coisas. Exemplifico. José Régio é “poeta novo” pelo conteúdo de seus poemas; a sua forma não apresenta novidade ou, pelo menos, não a apresenta notável. António Botto é “poeta novo” pela forma ou maneira das suas canções; o conteúdo delas é antiquíssimo, pois que existe integralmente nas cantigas do nosso povo. Num caso, poderíamos dizer com justeza, temos um “poeta novo”; no outro um “artista novo da poesia”. Em Adolfo Casais Monteiro conteúdo e forma são, por igual, novidade, se bem que não, um e outro, ainda definidos. Repare-se que não há nisto, involuntariamente sequer, uma comparação de méritos (valor); há tão-somente uma notação de diferença. Não louvo, não censuro: distingo.
Para que, porém, o termo genérico “poesia nova” possa convir por igual a duas espécies opostas — pois “conteúdo” e “ forma”, como aqui os entendo, são termos em contraste lógico — , força é que eles tenham qualquer elemento geral comum, sem o que seriam, não já espécies, dois géneros, diferentes, ou, então, espécies de dois diferentes géneros.
Ora não é difícil encontrar esse elemento comum. Consiste ele no individualismo absoluto. Não uso deste termo, bem entendido, em qualquer sentido político ou social, ou sequer filosófico; se bem que necessariamente os poetas e outros artistas e intelectuais novos — o fenómeno é, como seria de supor, comum a todos os géneros da vida mental de hoje — tendem a ser mais atraídos pelos sistemas individualistas em (sociologia) e política do que pelos sistemas que a estes são opostos. E tanto assim é que, à medida em que se tem ido afirmando e acentuando os estados autoritários hoje em moda, em essa mesma medida se têm ido confirmando na sua hostilidade ou afastando, para a indiferença quando não para a oposição, os poetas, os artistas e os intelectuais designáveis de “novos”. Desse aspecto do assunto, porém, não tenho, felizmente, que tratar. Repito: uso do termo “individualismo absoluto”, no sentido puramente estético, pois é a arte em geral, e uma forma dela em particular, em que me ocupo neste estudo.
Individualismo absoluto, neste sentido especial, significa a tendência e tensão do artista para exprimir inteiramente a sua alma, com tudo quanto nela se contém. Assim, queira ou não queira, ele a opõe, em emoção e sua expressão, às almas dos outros, pois que não é outro; às coisas que não são indivíduos, visto que é indivíduo.
Por um ou dois processos, ou por ambos, se obtém, ou se pode ou procura obter, esse resultado. Um é o processo material, o outro o formal, entendendo-se que uso dos termos “matéria” e “forma” no seu sentido filosófico, em que “matéria” significa a substância corporal — espiritual ou até ideal — de que um ser, um ente, é feito.
O primeiro processo consiste em exprimir intensa e extensamente a alma a si mesma, ou, se se preferir, a emoção à inteligência, a individualidade à consciência.
Se se efectua esse intento, resultava (resulta) uma obra, ou uns opera omnia, em que, voluntária ou involuntariamente, superior a todas as regras, o espírito do artista se afirma distinto do de todos os outros artistas, do de todos os outros homens, se afirma em oposição a um e a outro. Se se me objectar que isso em todos os tempos sucedeu aos grandes, aos veros, artistas, e que isso principalmente os fez grandes e veros artistas; que está na essência de serem eles grandes poetas o não se poderem confundir Shakespeare e Milton, nem sequer Shelley e Byron; responderei que assim é, como eu, e comigo o restante da população da terra, há muito e abundantemente o sabia. Farei a seguir, porém, dois dos meus tão queridos distinguos.
O primeiro é que, se esses grandes artistas tal faziam, o faziam instintivamente, praticamente, em contradição, muitas vezes, com os seus típicos intuitos racionais, com as suas mesmas teorias artísticas. Darei exemplos de um caso e de outro.
Teve Milton por intuito o cantar, no “Paraíso Perdido”, a Queda do Homem, como fonte, pela necessidade da redenção, do Cristianismo; teve por intuito, como ele mesmo diz no intróito, escrever a Epopeia do Protestantismo, e portanto, para ele, do Cristianismo. E que fez? Fez um poema, um grande poema, em que a figura mais altiva e nobre — mais épica portanto — é Satã; em que as figuras que mais nos chamam a alma são Adão e Eva, e mormente depois da Queda; em que Deus e os arcanjos fiéis são destituídos de alma e de vida, como se o autor os houvesse posto lá pela única razão que tinha lá que os pôr; em que o que transparece de cristão surge a tal ponto expresso, através de especulações rabínicas e cabalísticas, que o poema, no pensamento como na emoção, menos se diria escrito por um cristão que por um judeu inconverso que usasse de elementos cristãos como os poetas da Renascença usavam dos do Paganismo. Só quase dois séculos depois, quando se descobriu e se imprimiu o manuscrito do “Tractatus de Doctrina Christiana” — “christiana”, note-se — se compreendeu tudo isso, e sobretudo o que indiquei em último lugar. Milton, em seu foro íntimo, era ariano. Isto é, o homem virtuoso e austera, incapaz de uma subserviência, de uma concessão, de uma hipocrisia; o poeta — austero como o homem uno com ele — que pretendeu escrever o maior poema cristão, a Epopeia do Protestantismo — esse homem, esse poeta, não acreditava na divindade do Cristo! E, como não acreditava — ainda que, o que é possível, quando escreveu o “Paraíso Perdido”, a falta de fé lhe não houvesse ainda subido, ou de todo subido, do subconsciente ao consciente — , como não acreditava, digo, foi essa genuína descrença o que realmente deu alma e grandeza ao poema, o que lhe deu individualidade como poema e como expressão de um poeta e de um homem; foi essa sinceridade involuntária que a nós nos deu o vero e o maior de Milton.
Será ainda Milton que nos servirá de exemplo do segundo caso que citei — o da disparidade entre a natureza da obra realizada e a das doutrinas estéticas do autor. Tinha Milton por mestres os Antigos, e particularmente a Homero. Que há no “ Paraíso Perdido”, poema épico, que Milton devesse à “Ilíada” ou à “Odisseia”, ou, aliás, a qualquer epopeia ou poema da antiguidade? Por junto, nada. Pensamento, imagens, emoções — nada disso lhe ensinaram Homero e os Antigos, ou, aliás, os mesmos Modernos. O ritmo, tão acentuado em Homero, como em Virgílio, como no Dante — nem isso, supondo que possa deveras aprender-se, lhe poderiam eles ter ensinado, pois a técnica do hexâmetro em nada habilita o mais estudioso dela a descobrir uma técnica do decassílabo branco inglês. O estudo de igual ritmo italiano de nada serviria, tão diferentes são os dois idiomas. O mesmo estudo do único mestre de tal ritmo que houvesse escrito em inglês antes de Milton — esse estudo, ainda, de nada serviria, pois se Milton estudou a rítmica de Shakespeare, concluiu, a fazer juízo pelos resultados, que deveria vazar a própria em moldes que podem dizer-se opostos; e que se nisto, como em tudo mais, alguém o dissesse discípulo, fá-lo-ia segundo o preceito clássico do ut lucus a non lucendo.
A única coisa que há de comum entre a “ Ilíada” e o “Paraíso Perdido” e, à parte o serem ambos epopeias, o haver no poema de Milton a estruturação da epopeia, que, tal, começou em Homero. Se, porém, se houvessem perdido todas as epopeias da antiguidade, poderia Milton aprender como se deve dispor a fábula num poema épico, pela leitura, quando não, pelo exemplo, em Homero e nos outros poetas épicos, por certo, pela doutrina, em Aristóteles, Longino ou qualquer dos retóricos da Antiguidade.
E, ainda que nem isto houvesse, o mesmo instinto do poeta, se deveras o é, o levaria a compreender, ou a sentir, que qualquer composição deve ter, colocados, em seus respectivos lugares, princípio, meio e fim; que as matérias devem ser nela dispostas de sorte que o nexo delas seja inteligível e agradável; que há que haver uma relação de equilíbrio, embora porventura de equilíbrio variável, entre o que é descrição de acção, o que é diálogo, e o com que o poeta inicia, caminha [?] ou acaba. De instinto o poeta de génio — e nem de génio há mister — sente e sabe tudo isto. Com quem aprendeu Homero, ou o primeiro que enfabulou uma narrativa em verso? Com a mesma pessoa que ensinou a um homem ou mulher do nosso povo a compor, e com êxito,
......cravo roxo,
por lhes haver feito várias dissertações sobre poesia em geral, poesia lírica em particular, e, depois de alguns [excursos] sobre métrica portuguesa e a técnica da quadra heptassilábica, ainda lhes ter explicado em que condições fazer versos, e em que condições rimados os versos primeiro e terceiro, acabando por lhes descrever o processo, subtil mas difícil, da justaposição emotiva de inconexos, pela qual ficam ligados, por um vago, imperceptível fio de sentimento, por um igual e impalpável ritmo emotivo, elementos intelectuais que entre si têm pouca relação, ou, como na quadra citada, relação nenhuma.
Assim, substancialmente, foi Milton discípulo de Homero. Nos grandes poetas das línguas vivas dá-se pois, não sempre, mas quase sempre, o fenómeno que exemplifiquei com Milton e Homero. Nos quatro destes poetas que são verdadeiramente de primeira linha — Dante, Shakespeare, Milton e Goethe — dá-se invariavelmente. Os exemplos supremos são, por supremos, representativos, e todos depõem, neste pormenor, em igual sentido. O que se dá com Milton e Homero dá-se com Dante e Virgílio, seu “duca, signore e maestro”. Goethe assentava a sua vida teórica, ou a sua teoria da vida mental, em um principal elemento — a cultura grega. Que deixou de realmente fundamental, que deixou que, por o ser, deveras lhe dá a grandeza? O “Fausto”, as duas partes do “Fausto”, onde a desarrumação das matérias, e, na segunda, o abuso de simbolismo e de alegoria, em nada revelam um discípulo dos mestres da ordenação, sobretudo poética, dos temas, e da perspicuidade fluída do pensamento e da sua expressão. Declarava Goethe ser clássico, e, em sincera teoria, veramente o era; a sua obra-prima, o “Fausto” é a obra-prima do romantismo. (...)
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
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