A existência do dom de profecia é afirmada por muitos e negada por muitos.
A existência do dom de profecia é afirmada por muitos e negada por muitos. Na maioria dos casos, ou a linguagem profética é tão obscura que dela se pode fazer aplicação a qualquer facto, ou a abundância de pormenores é tão grande que dificilmente se encontrará um facto a que um ou outro dos pormenores se não possa ajustar. De sorte que o problema fundamental fica na mesma. Os que afirmam a existência do dom profético apontam o facto justificativo; os que lhe negam a existência apontam que qualquer facto, ainda que fosse contrário do que se deu, serviria igualmente, e portanto com igual inutilidade, de justificação.
Há contudo profecias que são simples e claras, como a célebre quadra das Centúrias de Nostradamo, em que, com mais de dois séculos de antecedência, o advento de Napoleão se indica e o seu carácter se define. E a quadra que começa: «Um imperador nascerá ao pé de Itália» — Un Empereur naistra prés d'Italie...
Estas profecias que são claras versam em geral factos: São como pequenos artigos de pequena enciclopédia, resumindo a história às avessas, isto é, antes de ela existir.
Há, porém, um caso curioso de profecia clara, que contém, com vinte e dois anos de antecipação, não a indicação de factos futuros, mas o comentário justo e preciso deles, como se os supusesse conhecidos. E esse vaticínio tem ainda de mais curioso o não ser, suponho, de um profissional da profecia.
No jornal italiano Avanti, de 21 de Janeiro de 1913, vem inserto um artigo em que se lê o seguinte, que peço ao leitor que, palavra a palavra, acompanhe e medite:
«Estamos na presença de uma Itália nacionalista, conservadora, clerical, que se propõe fazer da espada a sua lei, e do exército a escola da nação.
«Previmos esta perversão moral: não nos surpreende.
«Erram porém os que pensam que esta preponderância do militarismo é sinal de força. As nações fortes não têm que descer à espécie de carnaval estúpido a que os italianos hoje estão entregues: as nações fortes têm o sentido das proporções. A Itália nacionalista e militarista mostra que não tem esse sentido.
«E assim sucede que uma reles guerra de conquista é celebrada como se fosse um triunfo romano..»
Ignoro a que propósito imediato se escreveram essas linhas. Ignoro e não importa. São elas o mais justo, o mais claro e o mais cruel comentário de quanto hoje, vinte e dois anos depois, se está passando na Itália, ou, melhor, com a Itália.
Ao jornalista casual coube um lampejo de verdadeiro espírito profético.
Felizmente o artigo é assinado, de sorte que não falta o nome, nem portanto a honra, ao iluminado dessa súbita inspiração.
O autor do artigo do Avanti é o Sr. Benito Mussolini.
Não ter ele fixado residência em profeta!...
Fernando Pessoa - O Último Ano. (Catálogo da Exposição Comemorativa do Cinquentenário da Morte de Fernando Pessoa, organizada e coordenada por Teresa Sobral Cunha e João Rui de Sousa.)
Lisboa: Biblioteca Nacional, 1985.
- .Artigo escrito para o Diário de Lisboa, mas cortado pela Comissão de Censura.