Proj-logo

Arquivo Pessoa

OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
pdf
Fernando Pessoa

POEMA DE AMOR EM ESTADO NOVO

POEMA DE AMOR EM ESTADO NOVO

Tens o olhar misterioso

Com um jeito nevoento,

Indeciso, duvidoso,

Minha Marta Francisca,

Meu amor, meu orçamento!

A tua face de rosa

Tem o colorido esquivo

De uma nota oficiosa.

Quem dera ter-te em meus braços,

Ó meu saldo positivo!

E o teu cabelo — não choro

Seu regresso ao natural —Abandona o padrão-ouro

Amor, pomba, estrada, porta,

Sindicato nacional!

Não sei por que me desprezas.

Fita-me mais um instante,

Lindo corte nas despesas,

Adorada abolição

Da dívida flutuante!

Com que madrigais mostrar-te

Este amor que é chama viva?

Ouve, escuta: vou chamar-te

Assembleia Nacional

Câmara Corporativa.

Como te amo, como, como,

Meu Acto Colonial!

De amor já quase não como,

Meu Estatuto de Trabalho,

Meu Banco de Portugal!

Meu crédito no estrangeiro!

Meu encaixe — ouro adorado!

Serei sempre o teu romeiro...

Pousa a cabeça em meu ombro,

Ó meu Conselho de Estado!

Ó minha corporativa,

Minha lei de Estado Novo,

Não me sejas mais esquiva!

Meu coração quer guarida

Ó linda Casa do Povo!

União Nacional querida,

Teus olhos enchem de mágoa

A sombra da minha vida

Que passa como uma esquadra

Sobre a energia da água.

Que aristocrático ri,

O teu cabelo em cifrões — Finanças em mise-en-plis! —

Meu activo plebiscito,

Nunca desceste a eleições!

Por isso nunca me escolhes

E a minha esperança é vã.

Nem sequer por dó me acolhes,

Minha imprevidente linda

Civilização cristã!

Bem sei: por estes meus modos

Nunca me podes amar.

Olha, desculpa-mas todas.

Estou seguindo as directrizes

Do professor Salazar.

9-9-1935

Fernando Pessoa - O Último Ano. (Catálogo da Exposição Comemorativa do Cinquentenário da Morte de Fernando Pessoa, organizada e coordenada por Teresa Sobral Cunha e João Rui de Sousa.) Lisboa: Biblioteca Nacional, 1985.

 - .

N. do A.: «o demoliberalismo maçónico-comunista»