Pelas características indicadas como (sendo) as do provinciano...
Pelas características indicadas como (sendo) as do provinciano imediatamente se verifica que a mentalidade dele tem uma semelhança absoluta com a da criança. A atitude da criança para (com) as novidades do progresso é a da criança para (com) os brinquedos — ama-os por novos e por artificiais. E a criança, como o provinciano, um espírito desperto mas incompletamente desperto.
Ora o que distingue a mentalidade da criança é a incapacidade de concentração voluntária, o espírito de imitação e a ausência de espírito crítico. São estes, portanto, os característicos que iremos encontrar também no provinciano; são eles que o distinguirão do campónio, por um lado, do citadino, por outro. No campónio, semelhante ao animal, a concentração voluntária existe, mas instintiva; a imitação existe, mas superficial, e não, como na criança e no provinciano, vinda do fundo da alma; o espírito crítico não existe, mas é substituído por uma intuição bruta das realidades. No citadino, semelhante ao homem formado, existem as duas qualidades que na criança e no provinciano são negativas, e não há imitação, mas aproveitamento dos exemplos alheios.
Se percorrermos, olhando sem óculos de nenhum grau nem cor, a paisagem que nos apresentam as produções e as improduções do nosso escol, entendendo por escol o escol literário e artístico, o escol político e jornalístico, e o escol industrial e comercial, facilmente notaremos que o provincianismo é o seu característico comum e constante. Faço uma leve reserva quanto ao escol industrial: não há entre os nossos intelectuais, artistas, jornalistas ou políticos alguém cuja iniciativa e poder de coordenação se compare com os de, por exemplo, o Sr. Alfredo da Silva no campo industrial. Por desastre, porém, e para mal nosso, o escol industrial não tem, por natureza, influência intelectual alguma, e assim não serve de vivificar o escol em geral.
Há entre nós notáveis poetas, há entre nós notáveis artistas, há entre nós políticos e jornalistas notáveis. Entre os poetas e artistas há originalidade; sem isso não os poderíamos chamar notáveis. Mas o espírito mimético emerge; são originais, mas por natureza só — não evoluem, não crescem; fixado o seu primeiro “momento” original, passam o resto da vida a plagiar-se a si mesmo, a tal ponto que não há poeta nosso que não esteja lido por completo quando seja parcialmente lido, em quem a amostra não valha pela fazenda, em quem a parte não seja igual ao todo.
Onde a originalidade não é da essência da mente, como no jornalismo e na política, a originalidade não existe: o mimetismo é inteiro e absoluto. Desde que há teorias democráticas e republicanas em Portugal, estamos copiando como macacos as teorias estrangeiras. Nada nos muda, nada nos ensina. Entre os nossos “políticos” (assim designados para os distinguir dos homens da ditadura) há sem dúvida pessoas inteligentes. Ora esses homens inteligentes devem ter verificado (pois para isso é que a inteligência serve) que, tendo o seu sistema político — servilmente copiado de França — constantemente falhado, como provam os três movimentos contra-revolucionários que contra ele têm surgido, que uma de três coisas se dá: (1) ou as doutrinas democráticas são, em sua essência, erradas, (2) ou há qualquer coisa nelas que está errado, e cumpre expungir, para que elas fiquem “certas”, (3) ou está errada qualquer coisa, substancial ou acidental, nessas teorias na sua aplicação a Portugal. Conhece o leitor algum político ou algum jornalista que se tenha dado sequer ao esboço do trabalho necessário para inquirir [?] do ponto de erro [?] Não houve nenhum [...]
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.
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