Proj-logo

Arquivo Pessoa

OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
pdf
Fernando Pessoa

A NÃO-LATINIDADE DA IBÉRIA

A NÃO-LATINIDADE DA IBÉRIA

Várias razões se têm apresentado em favor da entrada de Portugal na guerra. Uma das principais, das mais alto cantadas (importa pouco, de momento, quais sejam as outras) é a de a Alemanha, por ser fundamentalmente inimiga dos países "latinos", da "raça latina", ser implicitamente nossa inimiga.

É evidente que tal afirmação envolve duas, e portanto, para a examinar, mister será examinar separadamente as duas afirmações que ela implica.

A primeira é que a Alemanha é fundamentalmente inimiga dos países "latinos". Deixemo-la por enquanto. Vamos à outra.

São a Espanha e Portugal países latinos?

Em primeiro lugar, cumpre advertir um leitor incauto que a expressão "raça latina" ou "países latinos" não tem sombra de base sociológica a que se apegue. Não há, na enorme diversidade de factores sociais incluída nos povos a que se convencionou chamar "latinos" traço comum, que não seja uma certa semelhança linguística — semelhança essa porém que resulta, não de uma fundamental e espontânea semelhança íntima de características raciais, mas de uma comum origem linguística nos restos degenerados do Império Romano.

As nações a que se chama latinas têm de comum os característicos das nações meridionais, mas esses característicos pertencem também a povos como o grego e o turco, a gentes como os árabes e os índios — longe de toda a conexão, propriamente tal — e linguística nenhuma — com essa morta civilização latina que serve aqui de nome.

Mas a comum origem da língua não basta para se afirmar uma fundamental semelhança de intuitos e fórmulas raciais.

Qual o sentido possível da expressão "povos latinos"? A que povos se pode dar esse nome? Evidentemente apenas àqueles que são herdeiros, não só da língua, mas do próprio espírito do Império Romano. Esses, e não outros, têm direito a ser considerados latinos, por pouco que a expressão em geral signifique.

Chegou-se ao absurdo de chamar latinos aos povos simplesmente reveladores de qualidades características dos povos do Sul, de climas quentes, suaves, estimuladores da inércia e da paixão. Como se o Império Romano — tão disciplinado e seco de emoções e paixões — se pudesse prestar a uma comparação dessas!

Só a França e a Itália são povos latinos, no sentido possível sociológico da palavra. A Itália é directamente herdeira da tradição clássica. A França, pelo seu génio peculiar de raça, predominantemente de lucidez e brilho, é a natural herdeira da parte lógica, simplificadora, um pouco superficial das gentes romanas. (?)

Se de tais, e tão pouco certas, considerações, passarmos a uma análise rigorosa das condições civilizacionais, depressa perderemos os últimos restos de dúvidas.

II

Analogia entre a molécula, célula, órgão e organismo, e a região, a nação, o grupo civilizacional e a civilização.

Assim, temos: uma civilização europeia, composta dos grupos civilizacionais seguintes:

a) anglo-escandinavo, caracterizado pelo desenvolvimento civilizacional no sentido individualista, libertário (não, é claro, no sentido deteriorantemente anarquístico da palavra)...

b) germânico — caracterizado pelo desenvolvimento organizado, estadual, disciplinador, das forças sociais, manifestado pela íntima e consciente relação entre as forças intelectuais e as activas (?)...

c) latino (Itália e França), caracterizado pelo exercício superficial das tendências civilizacionais, pela centralização indisciplinada, e pela produção civilizacional género [...]

d) oriental (ainda informe e incapaz de produzir elementos civilizacionais) — a Grécia, a Turquia, a Rússia, a Pérsia, os países balcânicos.

e) ibérico — composto de Espanha e Portugal e caracterizado por uma espécie de ocidentalização do europeu. A Ameri [...]

s.d.

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

 - 10.