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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

O assunto, é claro, podia ser muito mais aprofundado.

O assunto, é claro, podia ser muito mais aprofundado. Podíamos levar a nossa análise até ao ponto de tentar destrinçar quais os prováveis resultados culturais dessa ibericidade realizada. Podíamos tentar antever a que consequências de novidade europeia levaria a realização material do espírito ibérico, que nova doutrina religiosa, ou política, ou artística, surgiria do facto consumado de a Ibéria se ter encontrado enfim. Mas isso — resultados de um facto incerto, consequências de um mero sonho — seria tempo perdido como especulação científica, e ocupação ociosa como estímulo prático. O que importa agora não é ver onde nos levaria a Ibéria definitiva no que civilização consumada; mesmo supondo-a realizada de acordo com os desejos aqui expressos, falham os detalhes dessa realização, imprevisíveis, e desses alguma coisa dependeria na formação da unidade espiritual ibérica.

O que nos importa agora é, porém, apenas determinar o préespírito ibérico, a atitude liminar no problema de nos unirmos. O que importa é, desde já, se este é o nosso alto intuito, concebermos fortemente a nossa diferença dos outros grupos civilizacionais europeus, e a nossa íntima semelhança, através das nossas necessárias diferenças nacionais. Isso é que importa, e só isso. Ver bem que a nossa missão, seja ela qual for [...]

Não é porém impossível fazer dessa futura acção mental ibérica uma ideia vaga — que por vaga possa ser o contorno indeterminado dos factos futuros, sejam eles quais forem (logo que sejam de acordo com ela) que não possa ser desmentido(a).

Toda a nação que superiormente se constitui, isto é, que chega a obter uma consciência civilizacional de si própria, representa uma síntese especial de elementos dispersos da civilização a que pertence. O espírito francês é a síntese francesa dos elementos da civilização europeia; o espírito inglês é a síntese inglesa desses elementos; e assim para todos os outros países. Um país vale profundamente na sua civilização pelo grau com que, nacionalizando-os, aprofunda e dá novo sentido aos elementos gerais comuns a todos os países da civilização a que pertence. Um país inferior limita-se, aceitando os elementos gerais de civilização, a imprimir-lhes o cunho nacional suficiente para que não se desnacionalize, recebendo-os. Exemplo: a Suíça, a Holanda, a Bélgica. Este género de países nada de essencial dá à civilização. Podia deixar de existir sem que ela sofresse, e se alguma coisa valem é como buffer states, no sentido superior, fronteiras espessas entre nação e nação definidas. Chamo a estes países conservadores de Civilização.

Um país mediamente criador (exemplos: a França, a Alemanha, Castela como tal) não só aceita os elementos vindos do exterior mas também os harmoniza e os intensifica em um determinado sentido; esse sentido o vinco, a psique nacional o habilite a dar-lhes. Assim, desde o princípio da sua existência psíquica definida, o papel da França tem sido o da racionalização da civilização; os franceses são os harmonizadores do conjunto de ideias, de tendências que constituem o fundo civilizacional. Desde o princípio, o papel da Alemanha, parecidíssimo e oposto (no fundo a França e a Alemanha são duas faces da mesma medalha; foi o de transformar valores civilizacionais; por último foi o de disciplinar e concatenar praticamente as forças civilizacionais O papel de Castela-Espanha foi o de opor às correntes centrífugas da Europa o freio (absurdo mas talvez preciso) das [...]

A estes países chamo países distribuidores de civilização; de três maneiras distribuem civilização: pela acção imperialista guerreira, que leva na ponta das espadas a secousse psíquica precisa para a renovação civilizacional ao seio ferido das outras nações (Filipe II, Napoleão, Guilherme II); pela transformação de valores que a sua posição geográfica [...]

Finalmente há os países que criam civilização. São aqueles que aos elementos gerais que o seu tempo lhes fornece acrescentam, ao sintetizá-los, qualquer coisa que não consiste só na harmonia deles, mas qualquer coisa a mais, qualquer nova direcção não contida em um ou outro dos elementos sintetizados, mas no seu conjunto, e, se em algum dos elementos, vagamente. Tais são, supremamente a Itália e a Inglaterra (únicos países civilizados da Europa) e, em menor grau, em virtude da sua estupenda acção nas descobertas, este sagrado e divino lugar da terra, a quem os Deuses concederam que abrisse as portas do Longe e renovasse na distância o velho mundo.

Estas palavras parecerão estranhas, mas são meditadas e cautas. As nossas descobertas são uma obra cujo espantoso sentido ainda não subiu à tona da intuição sociológica contemporânea, em parte porque a sociologia ainda não existe, em parte porque o que dela não existe e para aí está é feito pela parcialidade jesuítica de franceses, pela pesada falta de intuição histórica dos alemães, e pela insularidade ignorante dos ingleses. Um exemplo servirá, e bastará, para dar a medida da estupidez sociológica dos que manejam estes assuntos. Em qualquer tratado de história, o autor, ao tratar das descobertas, cita, sempre, dois nomes ou três, e à roda deles tece a sua pobre parte da coroa de glória dos descobridores. Esses três nomes são Colombo, Vasco da Gama, e Fernão de Magalhães. Ora, se há coisa nítida para o sociólogo, é que o nome supremo nas Descobertas é o Infante D. Henrique, uma das figuras supremas de criador de civilização que o mundo tem visto; de quem Colombo, Gama e Fernão de Magalhães são o braço e o gesto. Tão certo é que na história, como na sociedade em geral, o acto brilhante é que suplanta o acto criador. Veja-se um exemplo que elucidará: quem fala da Revolução Inglesa e como da Rev. Francesa? E contudo a primeira foi a fons et origo da segunda. Por Cromwell e pelos seus homens entrou a República, a República no sentido moderno, de antimonarquia, na Europa. E todos pensam que foi com os grandes agitadores da Revolução de 1893!

Seja como for, esse período das descobertas marcou o que somos. Fomo-lo incompletamente, porque agimos inibericamente. Todos nós de aqui — portugueses, castelhanos, catalães — só atingiremos a nossa maioridade civilizacional quando, confederados na Ibéria, pudermos, lidos na desgraça e na experiência triste de tanto passado, afrontar a Europa outra vez, reconstruir o nosso predomínio dos tempos em que o mundo era nosso, de outra maneira, para outros fins, [...]

Três são os gritos de morte que devemos trazer no nosso coração: Delenda Gallia! Delenda Germania! Delenda Ecclesia! Na aspiração ao que esses gritos pretendem construamos a nossa alma ibérica. Por uma severa disciplina íntima, inteiramente nossa, tal qual a encontraremos na nossa alma romana e árabe talhemos em nosso espírito profético o destino ibérico futuro. Somos os precursores de uma tragédia divina, gritada ao Atlântico e ao Mediterrâneo. Ansiemos todos, nos nossos versos que menos o anseiam, nos nossos pensamentos que menos o contenham, nas nossas aspirações que menos pareçam vê-lo, o Dia Ibérico, o dia em que dominemos pelo espírito as américas do sul, e do centro, o dia em que o nosso abraço cinja a África Setentrional, o dia em que os pés dos nossos exércitos vitoriosos possam calcar os pavimentos de Paris!

Que esta aspiração de todo o passado ibérico, ressurrecto agora numa voz isolada, encontre eco nos corações da Ibéria! Que todos nós, por mais que nos custe, nos compenetremos do nosso destino gladiolado! Quebremos (aos pés — nós, portugueses, as nossas fantasias de repúblicas democráticas e outras invenções francesas, procurando-nos a nós em nós; vós, castelhanos, a ânsia até de conservardes o que tendes, o vosso imperialismo estulto de absorções inúteis, que só serve o Estrangeiro Comum; vós, catalães, a vossa ignóbil agitação operária feita por agentes espirituais da França! Sacrifiquemos, cada um de nós, aquilo que nada vale. Tudo isto vai custar, tudo isto é muito difícil, tudo isto pesa e dói e nos separa de coisas amadas, e de um passado próximo, que, embora fosse um erro, foi o nosso passado. Digamos às nossas tradições mortais (letais) como Cristo da sua Mãe: Quem é a minha Mãe [...]

Construamos em nós a Ibéria. Um dia a Ibéria será.

Custa muito a um católico ibérico reconhecer que a fé dos papas é inimiga da sua Cidade-Península. Custa muito a um português republicano reconhecer que a sua ideia de república é um insulto que os franceses fizeram à sua nacionalidade. É muito difícil resolver o problema de conservarmos a república sem termos a democracia, importação francesa, do que os franceses trouxeram estragado de Inglaterra. Mas só aquilo que vale a pena custa e dói. Bendita a dor e a pena pelas quais o Mundo se transforma.

s.d.

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

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