A ALIANÇA IBÉRICA
A ALIANÇA IBÉRICA
Postos estes preliminares, resta examinar, mais profundamente, quais as condições basilares dessa orientação, ibérica, a seguir. Que sentido real tem o exposto, de que devemos, portugueses e espanhóis, agir separados e conjuntos? Em que ponto deve haver entre nós separação, e em que ponto combinação de esforços?
A questão é exageradamente simples. Devemos ser separados em tudo o que seja problemas nacionais, juntos em tudo o que seja problemas civilizacionais. Instituições, costumes, convém que tudo isso seja diferente em um, e outro, povo. Orientação perante a Europa, convém que seja em ambos a mesma.
Coisas há que nos separam nacionalmente: o facto, por exemplo, de sermos um país colonial, e o de a Espanha já o não ser. Conservemos as outras coisas que nos separam: a república aqui e a monarquia lá (urge que nenhuma simpatia vá de nós para os republicanos espanhóis, gente aliás de curtas vistas em matéria nacional), o anticatolicismo entre nós, e entre eles o catolicismo.
Um facto fundamental nos separa; toda a aproximação resultará que um de nós ignora a essência sua, ou ambos a ignoram. Donde adviria um perigo ou para um, ou para ambos. Quando da nossa grandeza, de ambos, nós, forçados pelos resultados das descobertas a assumir um imperialismo, fomos tomar uma atitude espanhola. Daí a nossa queda sob o domínio da Espanha.
O facto fundamental que nos separa é este: a Espanha é uma nação composta de várias nacionalidades; nós somos uma nação unitária, homogénea, tanto quanto é possível sê-lo uma nação que não é uma mera Andorra ou São Marino.
Resulta desta radical diferença — à qual a diferença fundamental de clima, e portanto de índole, se junta — uma inevitável e lógica dissemelhança de instituições. Ali a monarquia é necessária, a não ser que se queira a Espanha desfeita nas nacionalidades que a compõem; aqui a república basta, e torna se desnecessária a monarquia, porquanto não temos nada a unificar, o país estando, por si, unificado. Só é admissível a monarquia onde não convém haver república. Onde uma ou outra pode existir, deve existir a república, porque é o mais avançado e indisciplinador dos dois sistemas.
O inimigo da Ibéria é, em primeiro lugar, a França. A alma francesa é fundamentalmente hostil à alma ibérica em qualquer das suas formas — salvo, talvez, na catalã.
Combater a fórmula francesa de civilização deve ser um dos pontos onde se junte o esforço ibérico, e claramente se concentre.
A índole profundamente nacionalista da Espanha opõe se ao feitio profundamente cosmopolita de Portugal. Parece haver aqui, já, um elemento que prejudicará toda a conjunção de esforços. Mas não é assim. O ideal pode ser comum, a orientação diversa. Convém, mesmo, que assim seja. Só a direcção geral civilizacional deve ser comum à Espanha e a Portugal. Mais estreita comunidade envolveria aquela aproximação que, como disse, é precisamente uma das coisas a evitar.
Como é negando que se afirma, e circunscrevendo que, se define, para que a orientação ibérica se defina e se veja, é preciso dizer lhe o que é que ela deve combater, qual o seu inimigo. Combatendo o irá criando a sua orientação.
Esse inimigo é, em primeiro lugar, a França.
Para poder haver uma comum orientação ibérica, tem que haver uma coisa qualquer, psíquica; de comum à Espanha e a Portugal. Existe esse elemento, e qual é, se existe? (Porque, se ele não existe, é inútil toda a tentativa de união, onde quer que seja.)
Tivemos de comum, em nosso grande período, que ambos tentámos, dum modo ou de outro, impor o catolicismo, religião estranha a uma origem ibérica. Agimos, assim, ambos de modo cosmopolita, porque criámos atitudes nacionais sobre elementos estranhos à nacionalidade. A Espanha, além disto, agiu imperialistamente, segundo um imperialismo de espécie tradicionalmente estranha a ela: e nós mais atenuadamente fizemos o mesmo, seguindo o imperialismo de expansão, mas dum modo diverso do antigo [...]
O problema capital da civilização moderna é qual a transformação que devem sofrer as ideias democráticas para que acompanhem o progresso social, com o qual se vão incompatibilizando.
Espanha e Portugal, países de fraca educação, estão, por isso mesmo, nas melhores condições para criar aristocracias. Além disso, não temos tradições políticas nenhumas. Nossa obra deve ser neste campo —procurar ibericamente a fórmula nova para as sociedades [...]
Criar uma nova literatura, uma nova filosofia — esse é o primeiro passo. Foi dado em Portugal, em filosofia sobretudo, por Leonardo Coimbra, um dos três grandes filósofos da Europa contemporânea (os outros dois são Bergson e Eucken).
Cultura e arte sintéticas das da Europa — não há civilização de outro modo — mas orientadas ibericamente, isto é, subordinadas ao conceito fundamental que das coisas faz a alma ibérica Tal conceito difere do das outras nações da Europa neste ponto — em que toda a política e a arte desses outros países se apoia em princípios nacionais, enquanto que nós outros só obtemos princípios nacionais através de sínteses e amálgamas de princípios importados, cosmopolitas. Especialmente é isto verdade no que diz respeito a Portugal, onde a atitude cosmopolita é máxima.
Quando nos falta uma compolitização forte, não criamos nada, caímos na nulidade intelectual. Outras nações continuam a ter relevo de vida quando nacionais na sua vida; nós precisamos ser internacionais para poder ser nacionais a qualquer ponto.
A cultura estrangeira é analítica, a cultura ibérica é sintética. Outra nação qualquer da Europa precisa apenas duma influência estrangeira para criar uma atitude sua. Nós precisamos de conflictantes influências estrangeiras para isso. Com elementos da Itália, a Inglaterra criou a sua Renascença. Com elementos também italianos, criou a França a sua. Nós, com elementos da Renascença somados aos da Idade Média, católicos.
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.
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