Neste capítulo profético entendamos porém o sentido das nossas ideias.
Ibéria
Neste capítulo profético entendamos porém o sentido das nossas ideias. Seria absurdo esperar que eu, ou outrem, mesmo com o auxílio de toda esta teoria delineada, pudesse mais que esboçar os resultados culturais que a sua aplicação e realidade futuras trariam. Neste ponto prever seria já ter. O que é possível esboçar e esboçar apenas, é que espécie de síntese resultaria de tal realização, e que elementos essa síntese conteria. O que é possível é ter a visão de como a síntese é feita, e não do que ela é, em verdade e vida, depois de feita.
Dissemos que a síntese cultural ibérica devia nascer da conjugação de três elementos, ou atitudes. Baseia-se no nosso comum carácter ibérico, e esse é o fundo ibero-romano-árabe da nossa personalidade psíquica comum. No que síntese cultural positiva ela é isso, entendendo-se, porém, que o é através da absorção assimiladora dos elementos contemporâneos de civilização. É a iberização das correntes civilizacionais europeias que forma a síntese ibérica, que é a transcendência especial de tais correntes somadas na nossa personalidade própria.
No que negativa, essa síntese cultural opõe-se, por um lado, ao próprio passado ibérico que foi inimigo da Ibéria: e esse passado resume-se nas doutrinas da Igreja Católica; por outro lado se opõe à cultura francesa, e à cultura alemã, que são as derivadas fortes das iniciais italiana e inglesa. A síntese ibérica é inimiga da cultura francesa porque a lucidez superficial do francês se não pode casar com os elementos árabes, profundos e intensos, da nossa personalidade psíquica, com o elemento sonhador, colorido, incendiado, do nosso arabismo nativo hoje. É inimiga da cultura germânica porque [...]
Não é inimiga da cultura italiana e da cultura inglesa, porque estas são culturas fundamentais e não meramente traduzidas, como as outras duas. Opor-nos a elas seria levantar barricadas contra a civilização. Somos a síntese do Mediterrâneo e do Atlântico; a cultura italiana é a flor do Mediterrâneo, a inglesa a do Atlântico no Norte. A França e a Alemanha são países intermédios, meros transmissores e aperfeiçoadores da criação alheia.
Na germanofilia castelhana e na francofilia portuguesa estão manifestadas as duas traições culturais da península.
Para mim, poeta decadente, para quem a política é apenas o mais perigoso dos divertimentos inúteis, tudo isto tem a importância [...]
Se, porém, se não trata de amizade, e de aproximação amistosa, frases que têm, entre as outras apontadas, a desvantagem de não terem sentido; se se trata de qualquer acordo que mais nitidamente se sinta e mais solidamente se veja, o caso é outro, e temos que encarar de frente, sem intuitos de ser complacentes ou mesmo imparciais (a imparcialidade é a forma menos nobre de ser parcial, porque é a mais hipócrita,
porque é a única verdadeiramente hipócrita).
Na península hispânica, de um lado a outro, nós não somos latinos, somos ibéricos. É preciso assentar nisto, antes de em mais nada. Nada temos, psicologicamente, de comum com os dois países herdeiros da civilização latina propriamente dita — a Itália e a França. Nós não somos latinos, somos ibéricos. Temos — espanhóis e portugueses — uma mentalidade à parte do resto da Europa. Por mais diferenças que nos separem ( e elas deveras existem) estamos mais próximos psiquicamente uns dos outros, do que qualquer de nós de outro qualquer povo extra-ibérico. Têm-se dito coisas como que nós portugueses somos mais parecidos com os franceses, ou com os italianos, do que com os espanhóis; felizmente não é verdade. A que grau de desnacionalização não era preciso que houvéssemos chegado para se poder dizer com justiça que [...]
Se somos ibéricos, temos direito a esperar que tudo deve tender para uma política ibérica, para uma civilização ibérica que, comum aos países que compõem a Ibéria, a todos, porém, transcenda (a cada um deles individualmente transcenda).
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.
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