Não é grande, nem absoluta nem relativamente, o número de revistas...
Não é grande, nem absoluta nem relativamente, o número de revistas em mais que uma língua que hoje se publicam em todo o mundo. Das poucas que há, a maioria compõe-se de revistas comerciais, e representa um meio termo entre duas edições da revista, cada uma em uma língua.
Vendo bem, e em princípio, a ideia de uma revista em duas línguas não se apresenta simpática. Há, porém, uma reserva a fazer a esse preconceito natural. É quando as duas línguas são tão próximas uma da outra, que qualquer delas é inteligível a quem propriamente falando não saiba senão a outra. Não há no mundo duas línguas tão justamente nestas condições como são a espanhola e a portuguesa. Por isso uma revista em estas duas línguas perde quase todo o carácter absurdo que revestiria se houvesse maior distância etimológica entre um e outro idioma.
Todo espanhol compreende, lendo, o português; todo português, compreende, lendo, o espanhol. Podem pôr-se, lado a lado, artigos em espanhol que especialmente interessem espanhóis, e artigos em português que especialmente interessem portugueses, sem que o interesse de qualquer deles fique afastado daquilo que especialmente se redigiu para interessar os outros. Tudo está em que esses artigos, que especialmente se destinam a interessar espanhóis ou portugueses, não sejam de um interesse tão restrito que não possam interessar também portugueses ou espanhóis. Quem, como os organizadores desta publicação, tem a técnica segura de como interessar, não encontra dificuldade em consegui-lo desta maneira, que a semelhança dos idiomas torna possível. Daí a índole desta revista, assim como o seu título inevitável .
De há tempos para cá se vem fazendo, por um processo de combinação espontânea que vale muito mais, e significa muito mais, que qualquer táctica de política amistosa, uma aproximação mental entre Portugal e Espanha. Dir-se-ia que os dois países repararam por fim no facto aparentemente evidente que uma fronteira, se separa, também une; e que, se duas nações vizinhas são duas por serem duas, podem moralmente ser quase uma por serem vizinhas. Esta aproximação mental não implica, de parte a parte, a abdicação de coisa alguma em que consista essencialmente a independência ou a personalidade de cada uma das nações: duas criaturas podem ser amigos sem ser sócios. Implica tão-somente um estabelecimento de entendimento e de amizade, natural no caso de Portugal e de Espanha, que nenhum conflito de ambições hoje separa, que uma civilização tradicional comum aproxima, e que se encontram mais que nunca ante o problema, comum também, de defender, naquela larga extensão da América que por ambos foi civilizada e aberta à continuidade do progresso, a tradição civilizacional ibérica contra a incursão disruptiva de conceitos civilizacionais estranhos.
Não está pois fora de propósito, nem quanto ao intuito, nem quanto à ocasião, que se lance a Revista de que este número é, não espécime, nem mesmo programa, mas unicamente explicação.
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.
- 24.