A nossa ruína cultural, a nossa não lusitanidade íntima, esse é o mal…
Relat. G.C.P. [Grémio de Cultura Literária]
A nossa ruína cultural, a nossa não lusitanidade íntima, esse é o mal que nos mina; todos os outros, por graves que sejam, podem passar, podem ter solução. Mas para aquilo que, continuado, é a morte mesma, não há solução.
Do esforço instintivo da sociedade portuguesa, da operação obscura das leis desconhecidas, pelas quais as sociedades se regem, e que são o comentário frequentemente irónico à vontade inútil dos homens, ao esforço estéril das vontades individuais e conscientes, não podemos esperar nada, embora o possamos esperar. É que não podemos ter confiança no que desconhecemos, nem trabalhar em prol ou contra o que é inevitável e seguro.
Do estado nada podemos esperar também, mas, aqui, por uma outra razão. O estado não é português, o estado não é decente, o estado está, desde 1820, na posse de homens cuja obra é a essência da traição e da falência. Procurar o auxílio do estado é tão absurdo como procurar influenciar os homens que o possuem. Não há neles uma centelha de boa vontade patriótica, nem de lucidez portuguesa. Vivem daquilo, e nem vivem daquilo elegantemente. O esforço revolucionário para os deitar abaixo é um gasto espúrio de energia. Quem é que se lhes vai seguir? Não há em Portugal nenhum grupo ou partido, nenhuma reunião de homens duradoura ou ocasional capaz de gerir o país. O que há é péssimo, mas é o que há. Sidónio Pais era Sidónio Pais, e a sua regência foi célebre pela imoralidade, pela profusão de apadrinhamentos, pela prolixa desvergonha nos negócios escuros e nos crimes políticos. Quando esse homem, que tinha as qualidades místicas do chefe de nação, que tinha as qualidades de astúcia precisas para manejar os homens, e as de energia para os compelir, não pôde, honesto como era, romper com a cercadura de ladrões que tinha, não pôde, leal como era, evitar estar cercado por traidores e bandidos, não pôde, nobre na coragem como era, evitar ser rodeado de assassinos e de trauliteiros — que espécie de homem esperamos nós que virá, que faca a obra de regeneração? Quanto aos partidos contrários, quando não aprenderam depois de Monsanto, quando, voltando ao poder, se mostraram ainda mais corruptos do que haviam sido no escuro consulado de Costa e Norton, quando, para se oporem à gerência Sidónio, continuaram, agravando-as, as suas deficiências, e desorganizaram a ordem social que aquele havia deveras posto de pé, e a unidade moral da nação, que aquele com a sua [...] esboçara, que circunstâncias temos nós que esperar que lhes ensinem qualquer coisa? A adversidade só os educou numa maior javardice na vitória.
A nossa intervenção na guerra foi uma obra, essencialmente, de comércio escuro, salvo na retórica das palavras e nos ocultos desígnios do Destino.
Se acertaram os que nos levaram à guerra, foi por erro.
Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Fernando Pessoa (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1979.
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