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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Nota à margem de não haver ainda Portugal

Nota à margem de não haver ainda Portugal

Afirmação [p]ara substituir um Manifesto

Vimos criar a sensibilidade portuguesa.

Até hoje só tem havido em Portugal a sensibilidade dos outros. Temos vivido por empréstimo a vida eur[o]peia. Salvo quando fizemos as descobertas, fomos sempre atrás dos últimos. Urge (...)

Lei de Malthus da sensibilidade.

Os estímulos da sensibilidade aumentam em proporção geométrica; a própria capacidade de sentir aumenta apenas em progressão aritmética.

Ao princípio, não se distingue bem a distância entre as duas progressões, mas, algum tempo passado, torna-se evidente; tempo depois evidentíssima. Na Renascença ainda no princípio da nossa civilização, existia esta pequena diferença, porquanto a progressão aritmética 2.4.6.8. coincide no seu segundo termo com a progressão geométrica 2.4.8.16 .....

É do romantismo para cá que se acentuou deveras com uma nitidez cada vez maior, a distância cavada pela virtude criadora dos números entre as duas progressões. De aí a incapacidade moderna de sentir o que sente. De aí a falência da sensibilidade contemporânea, enquanto não começou a perceber, por intuição aqui pela primeira vez exprimida em Lei, a sua razão aritmológica de ser. Primeiro avançaram os factos políticos para além da capacidade de os sentir; assim se estabeleceu na nossa civilização o princípio democrático quando nenhuma sensibilidade então, nem ainda, está apta a senti-lo. Com a era das máquinas a distância entre os termos de uma e outra progressão acentuou-se dolorosamente.

Terapêutica psíquica

Que maneira há de aproximar a sensibilidade da rápida multiplicação dos estímulos? Evidentemente que maneira natural, por assim dizer, não há nenhuma. Mas há uma maneira artificial.

Como obter essa artificialização da sensibilidade? Como pode o homem tornar-se, efectivamente, o construtor do seu próprio emotivismo?

Mediante três processos:

(1) a abolição do preconceito da personalidade. Acabemos com a ideia de que cada indivíduo é só ele-próprio. Todos nós coexistimos ao mesmo tempo que existimos. Todos nós somos todos os outros.

(2) A abolição do preconceito da individualidade. Deixemos de aceitar como verdadeira a tese fundamentalmente teológica da indivisibilidade da alma. Somos agregados de células, agrupamentos de psiquismos, de sub-nós, somos inteiramente tudo menos nós-próprios. Submerjamo-nos no mar de nós-próprios, afogados no Universo de lhe pertencermos.

(3) A abolição do dogma da continuidade lateral. Não julguemos mais que nós, do presente, somos um laço, um hífen móbil, entre o passado e o futuro. Não somos. Somos sim contínuos mas não com o passado ou com o futuro. A nossa continuidade é toda com o presente — com o presente externo de todas as coisas, e com o presente interno de todas as sensações.

Invertamos a ignóbil frase cientista que Bacon trasladou de Hipócrates — a de que a Natureza só se vence obedecendo-se-lhe. Ao contrário, à Natureza só se obedece vencendo-a. Só sendo superiores a tudo é que somos os iguais de tudo.

A interpretação futurista é uma visão de míopes da sensibilidade. Olham para o lado da Verdade, mas não lhe distinguem a figura.

Avisam-se os incautos e os sujeitos à hipnose do estrangeiro que este manifesto é superior, em todos os sentidos, a todos os manifestos simbolistas, cubistas ou futuristas.

s.d.

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

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