Proj-logo

Arquivo Pessoa

OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
pdf
Fernando Pessoa

EU, O DOUTOR

EU, O DOUTOR

Entrei uma tarde numa camisaria de onde gastava com o fim imaginado de comprar uma gravata. O caixeiro que estava livre de freguês, e que há muito me conhecia, cumprimentou-me alegremente: «Boa tarde, senhor doutor».

«Não sou doutor» disse-lhe, e era (a) verdade. «Porque é que me julga doutor?»

«Ah, eu realmente julgava...» respondeu ele limpidamente.

Pedi gravatas, escolhi a que preferi, paguei. Nesta altura o outro caixeiro, que também de há muito me conhecia, veio para ao pé do colega.

«Boa tarde», disse eu a ambos.

Os dois caixeiros inclinaram-se amáveis e sincrónicos, e, como um só, disseram:

«Boa tarde, senhor doutor, e muito obrigado».

Moralidade.

Quando a opinião nos faz doutores, doutores temos que ser. Na vida social, somos o que os outros nos julgam, e não o que até fingidamente somos. A nossa personalidade social, para todos, ou histórica, para os célebres, é uma ideia de nós que nada tem de nós. O estadista que saiba saber isto tem a chave do domínio do mundo. Pode, é claro, faltar-lhe a porta; isso, porém, é já destino.

31-1-1932

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

 - 269.

«Fábulas para as Nações Jovens».