Quem quisesse resumir numa palavra a característica principal da arte moderna...
Quem quisesse resumir numa palavra a característica principal da arte moderna encontrá-la-ia, perfeitamente, na palavra sonho. A arte moderna é arte de sonho.
Modernamente deu-se a diferenciação entre o pensamento e a acção, entre a ideia do esforço e o ideal, e o próprio esforço e a realização. Na Idade Média e na Renascença, um sonhador, como o Infante D. Henrique, punha o seu sonho em prática. Bastava que com intensidade o sonhasse. O mundo humano era pequeno e simples. Era-o todo o mundo até à época moderna. Não havia a complexidade de poder a que chamamos a democracia, não havia a intensidade de vida que devemos àquilo a que chamamos o industrialismo, nem havia a dispersão da vida, o alargamento da realidade que as descobertas deram e resulta no imperialismo. Hoje o mundo exterior humano é desta complexidade tripla e horrorosa. Logo no limiar do sonho surge o inevitável pensamento da impossibilidade. (A própria ignorância medieval era uma força de sonho). Hoje tudo tem o como e o porquê científico e exacto. Explorar a África seria aventureiro, mas não é já tenebroso e estranho; procurar o Pólo seria arriscado, mas já não é. O Mistério morreu na vida: quem vai explorar a África ou [...] o Pólo não leva em si o pavor do que virá a encontrar, porque sabe que só encontrará coisas cientificamente conhecidas ou cientificamente cognoscíveis. Já não há ousadia: basta a coragem física de um bom pugilista [?]. Por isso as mais loucas tentativas de idealização dos nossos aviadores e exploradores não logram ser não ridículas, tão de estatura de alma mediana estas são. É que são homens de ciência, homens de prática. E os grandes homens antigos eram homens de sonho.
Os homens diminuem. Gradualmente, cada vez mais, governar é administrar, guiar.
Desde que a arte moderna se tornara a arte pessoal, lógico era que o seu desenvolvimento fosse para uma interiorização cada vez maior — para o sonho crescente, cada vez mais para mais sonho.
O poeta de sonho é um melódico, um acorrentado na música dos seus versos, como Ariel estava preso na curva [?] de Sycorax. A música é essencialmente a arte do sonho: e o desenvolvimento da música moderno todo, no que valioso e grande, é a composição suprema de quanto aqui teorizamos. O poeta sonhador, porque sonhador, é até certo ponto músico. E para comunicar o seu sonho precisa de se valer das coisas que comunicam o sonho. A música é uma delas.
O poeta de sonho é geralmente um visual, um visual estético. O sonho é da vista geralmente. Pouco sabe auditivamente, tactilmente. E o “quadro”, a “paisagem” é de sonho, na sua essência, porque é estática, negadora do continuamente dinâmico que é o mundo exterior. (Quanto mais rápida e turva é a vida moderna, mais lento, quieto e claro é o sonho).
Nordau caiu no mais flagrante e grosseiro dos erros de que um raciocinador pode fazer [ser?] vítima em matéria sobre que raciocina. Confundiu em movimento de progresso, porque de diferenciação, com um movimento de regressão; tomou o princípio, hesitante e perplexo como todos os começares, de uma nova forma de arte por uma arte já feita; e não soube destrinçar entre o essencial e o ocasional, o instintivo e o teórico e posição num movimento artístico, porquanto, não descendo à compreensão do unde e do quo da civilização actual [...]
Viu os elementos de decadência que o movimento simbolista continha — o que pouco o elogia, porque esses elementos são flagrantes — e não viu o que, por detrás desses elementos, faz de Dante Gabriel Rossetti um grande poeta, e um grande poeta de Paul Verlaine. Nordau fez mais de asneiras e incompreensão: confundia, sob a mesma classificação de “místicos” e “tísicos”, formas de arte diferentes, de diferente significação [...]
Havia 3 caminhos a seguir ante este novo estado civilizacional: 1) entregar-se ao mundo exterior, deixar-se absorver por ele, tomando dele a vida oca e ruidosa, o esforço sumamente esforço, a Natureza simplesmente Natureza — e este caminho seguiram Whitman, Nietzsche, Verhaeren, e, entre nós, a corrente que incluiu Nunes Claro, Sílvio Rebelo e João de Barros. 2) Pôr-se ao lado, à parte dessa corrente, num sonho todo individual, todo isolado, reagindo inertemente e passivamente contra a vida moderna, quer pela ânsia medieval, a medievalité, quer pela fuga para o longe no espaço, quer para o estranho e o invulgar na vida — o Longe na vida afinal. Foi o caminho que seguiram Edgar Poe, Baudelaire (fugindo para o Estranho), Rossetti, Verlaine (para a Idade Média e para o Estranho), Eugénio de Castro (para a Grécia), Loti (para o Oriente). 3) Metendo esse ruidoso mundo, a natureza, tudo, dentro do próprio sonho — e fugindo da “Realidade” nesse sonho. É o caminho português (tão caracteristicamente português) — que vem desde Antero de Quental cada vez mais intenso até à nossa recentíssima poesia.
Quem quiser compreender o simbolismo tem de contar com a sua tripla natureza.
É: 1) uma decadência do romantismo;
2) um movimento de reacção contra o cientismo;
3) um estádio na evolução (ou princípio duma evolução) de uma nova arte
Quem não viu isto tudo, não compreenderá o simbolismo. Nordau viu só 1), outros vêem só 2) e 3).
O maior poeta da época moderna será o que tiver mais capacidade de sonho.
O misticismo e o egotismo, encontrados por Nordau na arte moderna, são os aspectos mórbidos do misticismo equilibrado e do personalismo característico da arte moderna, e que produziram Goethe, tão querido de Max Nordau, no seu primeiro estádio.
Em seu carácter, o sonhador mostra certos característicos: A assexualidade, ou parassexualidade, é um, e evidente; é a forma mais flagrante da sua incapacidade para lidar com a normalidade e a realidade das coisas.
Aquilo a que se chama a arte moderna, aquilo que é por enquanto a arte moderna, é apenas o princípio de uma arte — ou, antes, a transição entre os dois estádios da evolução civilizacional. Entre o chamado romantismo e a arte que vai agora caminhando rapidamente para o seu auge.
O Infante D. Henrique é o perfeito tipo do sonhador. Desde a sua assexualidade até ao seu perfeito sacrifício dos outros — é um sonhador. Mas viveu no tempo em que se podia sonhar.
Hoje o sonho é sempre de coisas inexequíveis. O que se concebe como exequível é porque se concebe como cientificamente exequível, e o que se concebe como cientificamente qualquer coisa não pode ser matéria de sonho.
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
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