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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

O DESCONHECIDO

O DESCONHECIDO

«Os esotéricos têm relações com os anjos, pela magia profunda dominam os espíritos, sabem a significação íntima e vital dos símbolos, conhecem a matemática profunda em que assentam as almas, «falaram» com os demiurgos, lidaram com os princípios magicamente causais que estão entre Deus e o Mundo, conheceram Cristo, na sua Figura Eterna e na sua Vera Fisiognomia não-simbólica.

«Sim, observei, lívido, eles foram aqueles que sem dúvida viram Isis sem véu.»

«Não só a Isis viram sem véu, mas com sentidos espiritualizados do seu corpo ao Maior Princípio viram frente a frente. Colheram o auxílio de Asmodeus, de Beelzebuth, de outros.

Agora escutai, disse o Desconhecido, baixando a voz que tomou de repente uma entoação de sombra, distante e ao mesmo tempo pavorosamente nítida. Escutai:

Pausou um momento. Depois, não sei se lentamente, mas tenho a impressão que sim, disse-me estas palavras assombrosas:

«Mas nada d'isso nunca existiu. Os espíritos, os deuses, as Vidas Supremas de que os símbolos falam, os demiurgos, os demónios, os espíritos todos — nunca existiram. São criações dos HERMÉTICOS para uso ilusório dos Esotéricos. Assim como estes só por símbolos não sempre certos dão notícia da sua fé e dos seus poderes aos Esotéricos, aqueles o fazem a eles. Deus mesmo não existe; Deus é uma criação ilusória dos HERMÉTICOS. Existe realmente e verdadeiramente para os Esotéricos, mas verdadeiramente não existe. O mistério é mais profundo do que julgais e de que os Esotéricos julgam. O Mistério É MAIS UNO E INDIVISÍVEL DE QUE DEUS E OS ANJOS.

Um grande horror físico descera sobre mim. Eu não sabia para onde pudesse olhar que um terror pessoal não saísse d'esse objecto.

Quando ergui os olhos não havia ninguém no quarto, além de mim. O grande Espelho fitava-me ocamente. Com mão trémula acendi o candeeiro. A alegria humilde da luz derramou-se de repente pela sala. Não estava lá ninguém. Eu tinha sonhado então? Não podia determinar se sim, se não. Olhei em volta, cheio de um pavor que morava, rígido, nas minhas mínimas, sentidas, veias.

Mas nada de estranho no quarto. Nada?

N'uma estante um livro saía para fora, parecia ir cair. Eu tive uma certeza inexplicável de que aquilo era anormal e estranho, de que (se bem que não tivesse reparado para a estante antes) aquele livro não estivera assim há talvez momentos. Quis ir em direcção a ele mexer-lhe, mas um pavor tolheu-me. Por fim pude avançar.

Cheguei ao pé da estante, diante do livro, tirei-o para fora. Olhei-lhe para a capa. Era a Bíblia.

N'um gesto rápido, como que decididor da minha sorte peguei na Bíblia e abria-a.

Não sei porquê um versículo foi a única coisa que imediatamente vi, como se o resto da página estivesse inteiramente branca. Foi esta rigorosamente, a sensação que tive.

Abri e li:

s.d.

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

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