Lembrou-se, há um tempo para cá, certa gente, degenerada por natureza...
Lembrou-se, há um tempo para cá, certa gente, degenerada por natureza e critica por predilecção, de protestar, cada qual com o mau “modo” que lhe é modo, contra a obscenidade e a confusão desta ou daquela “literatura”, destoutra ou daqueloutra poesia moderna, etc.
Isto, além de revelar a tendência para ter opiniões sobre qualquer assunto, que é um dos estigmas psíquicos de degenerescência, amostra, paralelamente, o hábito mental de não ter ideias, e expor ao público as ideias que se não tem.
Assim, neste ponto, nada curaram os autores dos diversos atentados críticos em ver o que seria a obscenidade e a confusão, não se detiveram em procurar o valor real dessa moeda artística. Nem sequer perguntaram a si próprios se na realidade o ser obsceno e confuso não seria mais natural e são do que escrever com clareza e lucidez.
De duas coisas uma: ou a ideação literária deve, ou não deve, seguir a norma da ideação vulgar. Ou por ser ideação deve ser apenas um grau superior da ideação normal, ou, por ser literária, e não vulgar, deve ser um género diferente de ideação.
Que carácter tem, vista sob o aspecto de se é confusa ou não, a ideação vulgar?
Sendo a ideação vulgar aquela que aparece nas conversas vulgares, é nesta prosa de conversa que temos de a fotografar.
Que carácter têm as ideias conforme expostas numa conversa usual?
São perfeitamente nítidas? Não o são. Tanto o não são que as discussões são geralmente intermináveis, sendo apenas modos de dois ou mais indivíduos levarem muito tempo a chegar a perceber que se não percebem uns aos outros, algumas vezes que se não percebem a si próprios, raras e ilustres vezes que não percebem nada.
São perfeitamente confusas? Não são. Se o fossem não só não achariam expressão nas palavras do próprio indivíduo, nem trariam consigo, ao serem expressas, aquela quota parte de compreensibilidade que habilita o outro locutor a julgar que as percebe...
A ideação de conversa é, portanto, ao mesmo tempo nítida e confusa. Em que é nítida e em que é confusa ? Vejamos. Se ela não fosse nítida na ideação da ideia, o indivíduo, não tendo essa ideia, não a poria em palavras, porque nem toda a gente pode estar com o Sr. Maeterlinck, constantemente a expor ideias que não tem. Se ela fosse nítida na ideação da expressão da ideia, o interlocutor perceberia o que se diz — o que nunca acontece, e, dado que soubesse o pensamento sobre o assunto, poderia, logo de princípio, dizer se estão ou não naquela espécie de divergência de si-próprios que se chama estar de acordo com outra pessoa.
De modo que chegamos a isto: que a ideação vulgar é nítida na ideação da ideia e confusa na ideação da expressão dessa ideia.
Ora, a ideação artística, sendo ou um prolongamento, ou uma inversão da ideação normal — uma das duas coisas há-de ser, porque aqui não se pode ser duas coisas opostas, como os católicos são cristãos (espiritualistas) e materialistas — , tem de ser ou — é o caso do prolongamento — , como aquela nítida na ideia e confusa na expressão, ou — e é o caso da inversão — nítida na expressão e confusa na ideia. No primeiro caso temos uma ideia nítida expressa confusamente, o que dá confusão, visto que a ideia, ao ser expressa, se torna confusa; e no segundo caso temos uma ideia confusa expressa nitidamente, o que dá confusão também, visto que uma ideia confusa não pode dar senão confusão, de qualquer modo que seja expressa.
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
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