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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

CASA BRANCA NAU PRETA

A CASA BRANCA NAU PRETA

Estou reclinado na poltrona, é tarde, o Verão apagou-se...

Nem sonho, nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro...

Não existe manhã para o meu torpor nesta hora...

Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim...

Há uma interrupção lateral na minha consciência...

Continuam encostadas as portas da janela desta tarde

Apesar de as janelas estarem abertas de par em par...

Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo,

E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma...

Quem dera que houvesse

Um terceiro estado prà alma, se ela tiver só dois...

Um quarto estado prà alma, se são três os que ela tem...

A impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar

Dói-me por detrás das costas da minha consciência de sentir...

As naus seguiram,

Seguiram viagem não sei em que dia escondido,

E a rota que deviam seguir estava escrita nos ritmos,

Os ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho...

Árvores paradas da quinta, vistas através da janela,

Árvores estranhas a mim a um ponto inconcebível à consciência de as estar vendo

Árvores iguais todas a não serem mais que eu vê-las,

Não poder eu fazer qualquer coisa género haver árvores que deixasse de doer,

Não poder eu coexistir para o lado de lá com estar-vos vendo do lado de cá,

E poder levantar-me desta poltrona deixando os sonhos no chão...

Que sonhos?... Eu não sei se sonhei... Que naus partiram, para onde?

Tive essa impressão sem nexo porque no quadro fronteiro

Naus partem — naus não, barcos, mas as naus estão em mim,

E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,

Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,

E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida...

Quem pôs as formas das árvores dentro da existência das árvores?

Quem deu frondoso a arvoredos, e me deixou por verdecer?

Onde tenho o meu pensamento que me dói estar sem ele,

Sentir sem auxílio de poder para quando quiser, e o mar alto

E a última viagem, sempre para lá, das naus a subir...

Não há substância de pensamento na matéria de alma com que penso...

Há só janelas abertas de par em par encostadas por causa do calor que já não faz,

E o quintal cheio de luz sem luz agora ainda-agora, e eu.

Na vidraça aberta, fronteira ao ângulo com que o meu olhar a colhe

A casa branca distante onde mora... Fecho o olhar...

E os meus olhos fitos na casa branca sem a ver

São outros olhos vendo sem estar fitos nela a nau que se afasta,

E eu, parado, mole, adormecido,

Tenho o mar embalando-me e sofro...

Aos próprios palácios distantes a nau que penso não leva.

As escadas dando sobre o mar inatingível ela não alberga.

Aos jardins maravilhosos nas ilhas inexplícitas não deixa.

Tudo perde o sentido com que o abrigo em meu pórtico

E o mar entra por os meus olhos o pórtico cessando.

Caia a noite, não caia a noite, que importa a candeia

Por acender nas casas que não vejo na encosta e eu lá?

Húmida sombra nos sons do tanque nocturna sem lua, as rãs rangem

Coaxar tarde no vale, porque tudo é vale onde o som dói.

Milagre do aparecimento da Senhora das Angústias aos loucos,

Maravilha do enegrecimento do punhal tirado para os actos,

Os olhos fechados, a cabeça pendida contra a coluna certa,

E o mundo para além dos vitrais paisagem sem ruínas...

A casa branca nau preta...

Felicidade na Austrália...

11-10-1916

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).

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