AS CONDIÇÕES DO PRESTÍGIO
AS CONDIÇÕES DO PRESTÍGIO
Descreveu Carlyle a humanidade como sendo um vaso cheio de cobras, cada uma d'elas tentando erguer a cabeça acima das de todas as outras.
A frase, aparentemente simples, assenta contudo em uma intuição que conviria que os psicólogos e os sociólogos meditassem de perto — o amor ao prestígio como grande anseio humano, a vaidade como qualidade primária do homem social. Os redactores de projectos igualitários, os sonhadores de organizações sociais salvadoras — últimos crentes no milagre — fariam bem em meditar, podendo, este princípio, tirando d'ele, sabendo, as suas necessárias conclusões.
Não é mais a vaidade que a confiança no efeito do valor próprio. A confiança só no valor próprio, que não no efeito d'ele, é outra coisa, e chama-se orgulho. Podem coexistir, podem não coexistir. Tão contraditória é a aparência da condição humana, que, podemos confiar no efeito de nosso valor, sem confiar nesse valor mesmo. É que na vida do espírito a acção precede sempre a consciência; movemo-nos antes que o queiramos.
Seja como for, a importância social da vaidade é implícita na definição, (que demos) d'ela. Ao passo que a confiança no valor próprio, porém não no efeito d'ele, — isto é, na aceitação d'ele por outrem — intimida e paralisa o esforço, pelo receio da desilusão e da dificuldade; a confiança no efeito d'esse valor necessariamente estimula para a acção.
Há por isso um sinal distintivo, pelo qual se diferençam os orgulhosos dos vaidosos: os orgulhosos são tímidos, os vaidosos são audazes. Há quem seja cumulativamente orgulhoso e vaidoso; quem o é será tímido e audaz ou intermitentemente, ou em manifestações diferentes do espírito.
Se a vaidade é mais ridícula que o orgulho, é que é por natureza activa, e se revela sempre; o orgulho, como se esconde, mal pode aparecer onde o escarneçam. Por isto, e ordinariamente, tem-se a vaidade por baixa, e por nobre o orgulho. Nem um, nem outro, é nobre ou deixa de sê-lo. Pela razão já exposta — a essência activa da vida —, a vaidade é mais vulgar, o orgulho — sobretudo o orgulho sem, ou com pouca, vaidade — raro. Da sua raridade se deriva — (assim) como de seu menor ridículo e de sua pouca incidência, por inerte, sobre outrem — o mito da sua nobreza.
É a vaidade a mestra do esforço, o sal da acção, o alimento da vida. Todo homem quer ser mais que os outros, dentro da esfera de ambição que a sua fantasia lhe determina. Ser mais rico que outro, mandar mais que outro, ser mais bonito, mais elegante, mais bem vestido — tais são as aspirações normais do último animal da evolução das espécies. D'elas nasce tudo que é social — o bom como o mau, assim o nobre como o mesquinho. O fato melhor do caixeiro, os gestos da condessa, a conquista da Gália por César, a Divina Comédia têm esta comum origem. Não há mister inventar, como Nietzsche, uma «vontade de poder» para disfarce opulento d'esta nudez do egoísmo humano. O pitecantropo vestido é menos dionisíaco do que isso.
Como o orgulho vive para dentro, pensando e sentindo, e a vaidade para fora, operando, resulta que, ante o conseguimento alheio, o primeiro movimento de um é o desconsolo e o tédio, da outra o despeito e a inveja. A inveja é a qualidade primária da comparação social: gera as intrigas e as malícias de que se compõe a quotidianidade da vida; estimula rancorosamente o esforço que se vai cansando; é a matriz de quase todas as censuras e de todas as revoluções.
Tal é a realidade da vida humana: a vaidade como base, a inveja como meio, o progresso como fim. Certos há, porém, que escapam à inveja do comum dos homens. Ao sentimento, que despertam, e pelo qual fogem a essa inveja, chama-se ordinariamente prestígio. O prestígio é, pois, aquela imposição da nossa personalidade aos outros, que não lhes desperta a inveja.
Parece que a primeira condição do prestígio deve ser a superioridade — a superioridade por nós reconhecida. Não é assim. A só superioridade não evita a inveja; há mister que essa superioridade se baseie em uma diferença de qualidade, que não, ou que não só, de grau.
A quem não temos por superior, e nos supera nos benefícios da vida, invejamos, invejamos simplesmente. A quem temos por nosso superior, porém como da mesma espécie que nós e nosso superior só em grau, invejamos ainda, porém de diverso modo: invejamos que a Natureza, que não já a Sorte ou o Destino, lhe concedesse as qualidades, por meio das quais nos supera. A quem, porém, sentimos não só superior, senão também diferente, dificilmente invejaremos, salvo se a inveja for uma disposição habitual nossa. Não há contraste sem semelhança. Não podemos comparar-nos com quem nos não parecemos. O nosso superior semelhante faz o que fazemos, porém melhor; o nosso superior diferente faz o que não poderíamos fazer nunca. Por isso um escritor português dificilmente invejará a celebridade de um escritor estrangeiro. Por isso Byron invejava Shakespeare, e só admirava Milton: o intuitivo menor doía-se do intuitivo maior; o grande racional não o ofendia.
A primeira condição do prestígio é, pois, necessariamente a diferença — a diferença, porém, desacompanhada de inferioridade. Todos sentimos diferente um louco ou um imbecil; a nenhum damos prestígio. Não falemos ainda de superioridade; falemos só de diferença. A primeira condição do prestígio é a diferença que não é inferior. É que todo o raro, desde que não seja baixo, atrai e preocupa.
Como, porém, a diferença tanto mais nos preocupará quanto menos pudermos definir em que consiste, segue que a segunda condição do prestígio é o mistério. Todos os grandes fascinadores se destacam por diferentes, e se insinuam por não se revelarem. Quando ouvirdes dizer que certo homem é «interessante» — é o primeiro adjectivo do prestígio — vereis que se deve entender que de certo modo se não compreende bem o que pensa, o que sente, que carácter tem. Os grandes sedutores usam conscientemente este processo de insinuação; muitas vezes não têm mais mistério que o saber o que o mistério vale.
A terceira — mas só a terceira — condição do prestígio é, então, a superioridade. Quando é enorme e sensível envolve já a diferença, e por aí, que não por si, se prestigia. Quando é súbita, deslumbrante envolve já o mistério, e por ele, que não por si, adquire prestígio. De per si — isto é, como superioridade explicável, racional — não é nem o primeiro nem o segundo elemento da sujeição do espírito alheio.
São estas as três condições do prestígio. Quem queira analisar o conteúdo d'ele não encontrará mais que isto. O prestígio do homem de génio é d'esta ordem, porque o génio é diferente e misterioso.
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
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