O que a nós verdadeiramente nos caracteriza e define…
O que a nós verdadeiramente nos caracteriza e define é, não o imperialismo universalista, mas o universalismo imperialista. Éramos essencialmente navegadores e descobridores, e só derivada e corolariamente homens de conquista e de colonização. Nem éramos temperamentalmente guerreiros, excepto na proporção em que o era o espírito do tempo (apoiado pela ânsia religiosa de dilatar a fé), nem tínhamos, ou alguma vez tivemos, população cujo número naturalmente se não pudesse conter dentro das nossas fronteiras.
Antes de sermos imperialistas, já éramos universalistas. Isto o revela a nossa primitiva literatura — a dos cancioneiros e novelas de cavalaria —, singularmente desprendida de qualquer dos dois estímulos onde o imperialismo, propriamente dito, tem origem como facto mental, e não necessidade política ou económica: o nacionalismo e o espírito religioso. A exaltação patriótica não aparece. E, onde há notas religiosas, são de um simples cristianismo não-dogmático, e, aqui e ali, o que hoje se chama anticlerical. Em parte era este o espírito da Idade Média, que, assim como era muito menos ignorante do que se julga, assim também era muito menos religiosa do que se crê. O espírito que fez ornar as catedrais e igrejas com bastas decorações obscenas e com caricaturas e sátiras esculpidas ao clero e à religião; e que fez com que paródias do mistério da Trindade e do Sacramento da Eucaristia figurassem nas iniciações das diversas classes do compagnonage (que era uma espécie de pré-maçonaria operativa) — esse espírito, se não era tão antirreligioso como essas manifestações poderiam fazer crer à nossa diferente mentalidade de hoje, não é todavia sinal de uma intensa vida ou profunda crença religiosa. São, até certo ponto manifestações infantis; mas a criança não é, nem pode ser, internamente religiosa: não o pode, por criança, ser mais que externamente.
Universalismo medieval
Esse universalismo revelou-se mais intenso em nós, porque em nós se revelou nacional. O universalismo medieval procedia, principalmente, da imperfeita formação das nacionalidades; em nós acentuou-se com a perfeita fundação da nossa. E assim haveríamos de seguir, pois em nossa acção imperial consubstanciámos, consciente ou inconscientemente, o, ainda maior, universalismo das descobertas com a exaltação patriótica com que nos empenhámos nelas.
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
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