I — A ciência constitui-se unicamente de factos.
I
A ciência constitui-se unicamente de factos. Esses factos pretendemos nós explicá-los; não o conseguimos, porém, julgando consegui-lo, porque ignoramos as causas primárias d'esses factos e partimos por conseguinte d'uma base desconhecida.
Exemplo: porque é que uma bala, atravessando um vidro, não o quebra e lhe forma apenas um buraco redondo, com o mesmo diâmetro que a bala, facto de todos conhecido? Explicamos nós: porque a velocidade com que a bala vai não dá tempo a que o choque se propague, não permitindo a sua fractura, ou sequer que se rache. Mas com esta resposta nada explicámos, apenas juntámos factos a outros factos; com a explicação d'esse fenómeno apresentamo-lo sob um aspecto e feitio diferente apenas. — Damos uma martelada n'um diamante e não o partimos. Porquê? Porque é duro. Damos n'um vidro e fracturamo-lo porque, explicamos nós, o vidro é frágil. Amolgamos o ferro porque este é maleável. Mas a dureza, a fragilidade, a maleabilidade são os mesmos fenómenos, são factos justapostos a factos, e ficamos encerrados n'um círculo vicioso: quebra-se porque é frágil, é frágil porque se quebra. Nada explicamos, pois.
Quanto maior for a série dos factos em harmonia, encadeando-se para nos esclarecer o espírito, tanto mais satisfeito este fica. Um fenómeno desconhecido cai sob a nossa observação — a faísca eléctrica, por exemplo; no nosso espírito surge logo a dúvida, a pergunta: o que é a faísca? E pela observação, pela experiência, encadeamos uma série de factos, electricidades de nomes contrários refundindo-se, vibrações da matéria, ondulações através d'esta, transformações de energia, produções luminosas, etc., tudo o que constitui a faísca; e o nosso espírito fica satisfeito, ainda que nada tivesse explicado, porque não conhece os factos primários.
Porque é pois que o nosso espírito se satisfez?
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
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