ESTÉTICA - Um grande artista (literário) nota-se aplicando-lhe...
ESTÉTICA
Um grande artista (literário) nota-se aplicando-lhe a seguinte pergunta critica: tem paixão ou imaginação ou pensamento? Por ex. os “Lusíadas” de Camões têm paixão (o patriotismo), imaginação (o Adamastor, a Ilha dos Amores), mas não falhos de pensamento. Os sonetos de Antero têm sempre pensamento, às vezes imaginação, paixão nunca (Júlio Dantas nada: não é um grande poeta).
O arquitecto, o pintor, o escultor não podem mostrar pensamento, nem o pode o compositor musical. Mas os três primeiros podem mostrar imaginação (conquanto não emoção); o segundo emoção, conquanto não imaginação. Vemos assim nitidamente as diferenças entre as artes.
O pintor, se quiser dar uma aproximação do pensamento, só pode fazer uma coisa: simbolizar; o escultor menos, o arquitecto nada. O músico nunca pode nem dar nem indicar pensamento. E evidente a razão: a música dá a emoção, as artes da vista a imaginação; ora a emoção não está ligada à razão, mas a imaginação aproxima-se, sendo de perto uma combinação de emoção e razão, tendo o carácter não-rígido da emoção (a mildness), e a frieza da razão. A música é das artes todas a mais intuitiva, a mais instintiva, aquela em que crianças se tornam notáveis; é que da emoção depende e não da imaginação nem do pensamento, quer dizer, a segunda, mais do que a primeira, indesenvolvida nas crianças.
Estas considerações tocaram no símbolo. Ajudam-nos a compreendê-lo. O símbolo é o modo de pensar dos imaginativos (nos que são inintelectuais, habitual; nos que são intelectuais, voluntário, se assim se pode dizer).
Primeiramente, primitivamente, o homem, em quem ainda se não tinha diferenciado imaginação e razão, pensou por símbolos, por imagens, por metáforas.
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A imaginação nasce primitivamente da emoção, e da imaginação nasce depois a razão, como irmã. Mas — não sendo criadas — cada qual está já contida na anterior. Temos assim que a evolução mental humana é do seguinte modo:
(inserir esquema da pág. 125)
1º a repetição das sensações forma a memória
A sensação, persistindo, vai deixando alguma coisa que pela memória se vai tornando permanente. Esta permanência da sensação é o sentimento. Mas, a par disto o mesmo processo deu-se quanto à inteligência: a memória ideativa (a outra é a afectiva, mas está combinando-se) também se constituiu pela repetição das representações; como se forma, quanto à parte afectiva da psique, o sentimento, forma-se, quanto à parte intelectual, a noção, uma ideia das coisas. A mesma permanência que forma, sentimentalmente, o sentimento, forma intelectualmente a noção. Forma [?] [...] do impulso, repetido — o desejo. Temos assim o segundo grau da evolução mental. Noção — sentimento — desejo. O 1º era aquele em que estavam estes 3 elementos virtuais na vida — sensação-impulso que eram uma unidade mais homogénea. Mas os outros 3 não tinham uma unidade; é preciso não o esquecer. Mais heterogénea, porém, esta unidade começa nos seus 3 elementos a influenciar-se mutuamente, ajudando a desenvolver o que cada um em si tem.
Mas os sentimentos e os desejos compelem o ente, quando os sente, a associar-lhes noções que a memória afixara a certos sentimentos e desejos, qua associações no passado. Nasce assim a imaginação. Paralelamente, a influência dos desejos e das noções ou ideias nos sentimentos fazem com que estes, ao ser recordados e incitados por meio de imagens e lembranças, formem uma nova coisa: a emoção (da qual o exemplo é o medo). E com respeito ao desejo o mesmo acontece, sendo o resultado a paixão. (Paixão, emoção e imaginação são três partes de um todo; p. ex: no medo, há imanente a imaginação representativa do perigo, a emoção do medo e a paixão do temor levando à acção de fugir — o que se concebe, o que se sente e o que se é impelido). É este o 4º grau da evolução mental.
À medida porém que no cérebro nascem representações imaginativas (i. é, impulsos de [...] imediata) o ente associa-os como sensações: temos o pensamento. Pensamento ainda não distante da imaginação.
Todas estas faculdades são, não nos devemos esquecer, desenvolvimentos de uma só: a consciência. Essa consciência entra através de todas essas manifestações.
Estas faculdades formam camadas.
Por ex., a imaginação artística não é a do período da imaginação, mas sim essa (já radicada) + o pensamento abstracção.
1) A 1ª arte (já das aves) é a música. 2) A memória não é um fenómeno inteligente; é um fenómeno da consciência.
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
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