Proj-logo

Arquivo Pessoa

OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
pdf
Fernando Pessoa

Sangra-me o coração. Tudo que penso

Sangra-me o coração. Tudo que penso

A emoção mo tomou. Sofro esta mágoa

Que é o mundo imoral, regrado e imenso,

No qual o bem é só como um incenso

Que cerca a vida, como a terra a água.

Todos os dias, oiça ou veja, dão

Misérias, males, injustiças — quanto

Pode afligir o estéril coração.

E todo anseio pelo bem é vão,

E a vontade tão vã como é o pranto.

Que Deus duplo nos pôs na alma sensível

Ao mesmo tempo os dons de conhecer

Que o mal é a norma, o natural possível,

E de querer o bem, inútil nível,

Que nunca assenta regular no ser?

Com que fria esquadria e vão compasso

Que invisível Geómetra regrou

As marés deste mar de mau sargaço —

O mundo fluido, com seu tempo e espaço,

Que ele mesmo não sabe quem criou?

Mas, seja como for, nesta descida

De Deus ao ser, o mal teve alma e azo;

E o Bem, justiça espiritual da vida,

É perdida palavra, substituída

Por bens obscuros, fórmulas do acaso.

Que plano extinto, antes de conseguido,

Ficou só mundo, norma e desmazelo?

Mundo imperfeito, porque foi erguido?

Como acabá-lo, templo inconcluído,

Se nos falta o segredo com que erguê-lo?

O mundo é Deus que é morto, e a alma aquele

Que, esse Deus exumado, reflectiu

A morte e a exumação que houveram dele.

Mas está perdido o selo com que sele

Seu pacto com o vivo que caiu.

Por isso, em sombra e natural desgraça,

Tem que buscar aquilo que perdeu —

Não ela, mas a morte que a repassa,

E vem achar no Verbo a fé e a graça —

A nova vida do que já morreu.

Porque o Verbo é quem Deus era primeiro,

Antes que a morte, que o tornou o mundo,

Corrompesse de mal o mundo inteiro:

E assim no Verbo, que é o Deus terceiro,

A alma volve ao Bem que é o seu fundo.

26-4-1934

Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993).

 - 101.