III - Esta obra é, na sua substância, a reconstituição...
III
Esta obra é, na sua substância, a reconstituição imediata e integral do paganismo.
Despi-vos de todos os pensamentos que tenhais acumulado ser a religião pagã. Eles são todos falsos. E são todos falsos, porque ou são pensamentos que só atingem a forma exterior do paganismo — rito, culto ou representação dos deuses; ou porque, não sendo esses, são pensamentos em que o paganismo é considerado em relação ao Cristianismo, em relação ao qual não pode ser considerado, porque lhe é anterior; ou são pensamentos que temos por pagãos mais porque são sistemas filosóficos da Grécia, que, por serem pagãos de origem, não são todos, porventura, pagãos de condição.
Dizei-me, porém: se, ignorante de todo o Cristianismo, vísseis um dia em uma mesa [?], um crucifixo ou uma imagem de Cristo, teríeis, só com vê-los, o conhecimento intuitivo de serem de rezas, de dogmas e de sentimentos especiais, cujo substracto metafísico determina o Cristianismo? Se, desconhecedores da complexa esoteria do budismo, vos encontrásseis, qualquer dia, em face duma imagem de Sakyamuni, com suas trés cabeças e os seus seis braços, deduziríeis, como seu [...] de ser a terra molhada, toda a soma de (...) adivinharíeis que aquela imagem é o símbolo de uma fé que tem a renúncia ao mundo, não só exterior como interior, e a morte total como única verdadeira vida?
Deduziríeis o sério [?] do ritual da confissão? Conheceríeis dos Templários a (...) da Suma de São Tomás de Aquino?
[...] Logo que nasceu o Cristianismo teve heresias. E se vinte séculos de Cristianismo não fizeram compreender o Cristianismo e viveis nele, como quereis compreender o paganismo, em que não viveis e que não sentis?
Quando, por isso, vos digo que esta obra é a reconstrução do paganismo, e, lendo-a, não vedes lá deuses, não pasmeis, nem duvideis de mim. Os deuses (volto à forma conveniente) são os atributos de substância «pagã»; necessários à existência da substância como manifestada, mas não à da substância como substância.
O que há na literatura pagã não são os deuses mas a interpretação dos deuses.
Tão-pouco espereis encontrar nesta obra qualquer filosofia pagã conhecida — epicurista (...), a doutrina de [...]
Não serão os deuses. A filosofia dos pagãos?
Não: há só uma maneira de reconstruir o sentimento pagão: é reaver, da noite onde jaz, o sentimento do sentimento pagão. É ir buscar, ao limbo das coisas idas, o paganismo tal qual era nos sentidos e nos espíritos dos seus crentes, e não nos fingirmos de deuses por, a esses crentes, interpretarmos objectivamente essa crença.
Tal obra, direis, resulta nula, porque a substância, sem os atributos é nada. Não também nem aqui é assim. Se a substância se estabelecesse na nossa sensibilidade, os atributos viriam, sendo, de mais a mais, já conhecidos. E, porque não nascemos pagãos, se o havemos de ser, temos de o aprender, e pelo alfabeto e, como todas as línguas [...] o alfabeto não é o mesmo.
Em muitos séculos de existência o Cristianismo só esteve adaptado à civilização europeia, quando não havia ainda civilização na Europa. Em tão absurda e paradoxal frase se há-de (...).
Direis então se não vale a pena reconstruir o sentimento pagão? Quando a lógica vo-lo não disser, não vo-lo disser a intuição — a história que vos ensine, que, sempre que a nossa civilização subiu, subiu a vontade da revivescência dos elementos pagãos.
E tendo que reconstruir o paganismo, que paganismo deverá ser reconstruído? Os seus acidentes? Sem o fundo, que nós não temos na nossa sensibilidade, perder-nos-íamos neles. Interpretaríamos os deuses à maneira cristã.
Se, visitando um convento de carmelitas, em companhia de estada de um desses descalços, repararmos bem com os teoremas dos nossos sentidos julgá-los-íamos os mesmos que lançaram contra a fina embativa a raiva dos cruzados, e foram o óleo (...) com que se acendeu a lâmpada das descobertas?
Quantos de vós, lidos em Revolução Francesa, não sabeis ver que os motivos que a determinaram são os mesmos que o Cristianismo (...) que ela é um movimento cristão laico, e que, a sua oposição ao Cristianismo é apenas como a parte no todo (...)
Quantos de vós não vedes que as ideias, chamadas «modernas», de igualdade social, entre homem e mulher, de igualdade de direitos entre homem e homem (...) têm origem no sentimento que unia no estertor do império romano, entre escravos, (...); à parte o que são de característicos de todas as involuções das sociedades em que a disciplina das fórmulas essenciais [?] dói à moleza das gentes e o senso das realidades naturais na sociedade — o princípio construtivo, o princípio da guerra — se fina na noite com a inteligência capaz de contrariar e o sentimento capaz de estimular?
Excedo o que devo, e a obra tarda. Qual é, então, a substância do paganismo?
IV
A primeira distinção se estabelece, porque, de certo modo, nos aproximamos de uma noção da substância do paganismo, e é que o paganismo é uma religião natural, e o Cristismo por exemplo, uma religião cultural. Uma nasceu do sonho, da terra e dos sentimentos naturais dos homens; mas sempre se perde no tempo primeiro e na noite que está antes da história. A outra nasce no tempo da ordem romana, e embora coagulasse elementos de toda a espécie, (...) na origem é cultural e artificial.
Outro tanto acontece com certas ideias do vulgo a propósito do paganismo — a «alegria» pagã, que é a alegria dos gregos e não do paganismo (e ainda assim os gregos eram menos alegres do que o vulgo crê), que é como se julgássemos o Cristismo pelas festas dos santos e pelas romarias; o «vício» pagão, como se não houvesse prazer senão o da Roma decadente e da Grécia conquistada já, eivada já, mesmo, da sentimentalidade de onde houve de sair o cristianismo; é cheia já, a arte, do aristotelismo já arte ou filosofia de Platão.
A verdade é que quando um homem do nosso tempo quer dizer que não é cristão e que ama a beleza, diz que é pagão; não ama, no fundo, os seus artistas, mas tão-só a sentimentalidade cristã, nem, em geral, ama uma ideia de beleza de que como pagão se agradaria.
É uma mensagem de alegria para todos a quem oprime a fúria niveladora de uma época podre, a raiva igualitária de uma mesquinhez constante, a esterilidade da nossa pátria, a necessidade de uma metafísica.
A esta obra faltam, é certo, os elementos que dizemos sociais. Esses faltam todos.
Nem a noção do homem cívico, nem a noção da forma no verso, nem a disciplina no pensar e no escrever. Aqui nisto, Caeiro é da sua época. Mas é também da época de (...).
Foi a sensibilidade pagã que renasceu nele, não a inteligência pagã. Agradeçamos-lhe o ter feito a obra divina; consideremo-la nós com o pensamento humano e o que o estudo, a aplicação e a vontade firme pode obrar.
Por este homem e por esta obra estamos, sem que ninguém o sinta, no limiar de uma nova era.
Eu relembro:
Au plus profond...
Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença,
1994.
- 259.Prefácio a Caeiro