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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Sensacionismo. [Vida moderna]

Sensacionismo.

O capítulo sobre a relação entre a arte moderna e a vida moderna.

1. Toda a época civilizacional gira em torno a um princípio que define tal época e lhe dá os seus característicos típicos e predominantes. Podem outros elementos, ou vindos de outras épocas anteriores, ou surgidos, a par desse, citado, elemento típico, dentro da mesma época, caracterizá-la também, para uma análise ou deficiente, ou assintética; mas resultará de um escrúpulo mais exacto de analisar que uma época é sempre definível, e em justiça o é, por um característico predominante, que é o que lhe grava o estigma da sua tipicidade.

A época moderna, tomando esta frase no sentido usual de abranger um período que date, aproximadamente, da revolução francesa e venha até aos nossos dias, resume-se tipicamente na acção de um fenómeno principal. Esse fenómeno é a passagem do elemento comercial e industrial da vida para a primeira plana da existência social mercê do acréscimo da vida científica, das invenções e aperfeiçoamentos constantes da ciência. Assim, a nossa época é a época da ciência positiva, isto é, da ciência desenvolvida em todos os seus ramos aplicáveis à prática, e do desenvolvimento dessa própria aplicação. As ciências não directamente, mas indirectamente aplicáveis à prática, como as matemáticas, pouco avanço tiveram — relativamente às outras — nos nossos tempos, e o que sofreram, tipicamente, menos tem sido um avanço, que uma crítica tendente a destruí-las. Basta que se recorde os trabalhos do matemático Poincaré, para que se note bem qual a orientação positiva da nossa época, que às ciências matemáticas, ou procura aluí-las, ou reduzi-las a positivas pela redução delas a meras hipóteses utilizáveis, pragmaticamente certas apenas.

Os progressos da ciência e da aplicação da ciência dominam toda a época moderna e dão-lhe o tipo civilizacional. Vejamos qual tem sido, de todas as maneiras, mas cingindo-nos ao principal, o resultado de ser esta a época da ciência.

Na esfera nacional o resultado do aumento da ciência foi 1) o aumento espantoso das facilidades de comunicação e de transporte; 2) o aumento, espantoso também, das indústrias e da actividade comercial; 3) o aumento, não menos notável, do mero conteúdo mental da experiência humana, pelo próprio progresso da ciência, entendendo não só a ciência positiva, mas as ciências históricas e outras, cuja investigação foi também beneficiada, não só pelo geral aumento de facilidades, como pela maior ânsia de cultura que elas trouxeram, pela especialização crescente de misteres (intelectuais como os outros) e pela atenção que aos estados eminentes mais merece a dotação atinente à realização de tais estudos.

Estes três elementos, evidentemente, não existem separados senão na análise que os separa; na realidade formam um todo harmónico e interagem constante e negativamente.

Qual foi o resultado que estes três elementos trouxeram à modalidade da civilização? Da sua convergência esse resultado facilmente se deduz. Traduz-se pela palavra internacionalismo, ou pela sua sinónima cosmopolitismo.

A maior facilidade das comunicações tornou fácil, e por fácil, constante, a flutuação de populações, as viagens, as relações comerciais, a emigração, a acção comercial e industrial de importadores e exportadores Esta, por sua vez, tornou maior a própria facilidade de transportes, que a gerara no auge que atingiu. Fatalmente, pois, que o ponto de apoio da mentalidade moderna passou gradualmente a estar naquela parte da vida social que intimamente se relaciona com, e necessariamente se desenvolve por, uma crescente facilidade de comunicações, e esse ponto é a vida comercial, no que vida internacional de exportação e importação. E o acréscimo de vida industrial, que por o aumento das condições científicas paralelamente se dava, maior tornava a actividade comercial que naturalmente a prolonga. Resultou a mentalidade essencialmente comercialista e industrialista das sociedades modernas, com os característicos que, em todo o tempo, corresponderam e foram o resultado de tal vida: o amor ao luxo, a degradação do senso moral pela predominância do instinto mercantil, a indiferença aos fins elevados nas questões sociais e políticas, etc. Mas sobre este ponto passo de leve agora, porque ele não é um resultado internacional, mas individual, das condições modernas da civilização.

Resultou, disse, um internacionalismo como fórmula típica das sociedades modernas nas suas relações umas com outras. Esta palavra internacionalismo que significa? Que o sentimento nacional decai, dada a maior necessidade de relacionar-se com o estrangeiro, e dado, também, o golpe que nesse sentimento vibra, por sua natureza, o instinto comercialista; que cada nação, à parte isso, passou a ser mais rica dentro de si própria, passou a resumir em si tudo quanto é típico das outras nações, que a vida de cada cidade da Europa (por exemplo) passou a conter em si elementos típicos da vida de todas as outras cidades, não só da Europa, mas de todo o mundo — isto quer pela presença em todas as colónias de naturais dessas outras nações, quer pelas constantes relações comerciais e intelectuais com essas, quer pela diária informação jornalística, espectacular, cinematográfica. ( . . . )

No campo individual os resultados foram de ordem idêntica. A mentalidade comercialista em todos os tempos produziu determinados resultados: o aumento do amor ao luxo, o enfraquecimento do senso moral, a moleza social até certo ponto... E, assim como para a formação desta mentalidade contribuiu o internacionalismo acima descrito, para a formação desse nacionalismo não menos e não diferentemente contribuiu esta mentalidade, frutos ambos da mesma causa triplamente agente, e que já se mencionou, quando se iniciou este estudo.

O curioso e notável é que a mentalidade criada por esta acção da era das máquinas sobre o indivíduo, no que indivíduo, coincide com o que, em outras épocas, é a mentalidade da decadência. E este tipo mental, em que o laço social fraqueja, em que o amor do luxo toma aumento, em que o individualismo se torna nítido e forte, contém com efeito todos os característicos da obscura coisa a que se tem chamado Decadência. Apenas a causação é, nos dois casos, diversa. Quando, na antiguidade, este tipo mental aparecia, e era de feito o tipo mental das decadências, ele resultava, não do aparecimento de um novo factor na vida social, senão do enfraquecimento e perturbação dos velhos factores. Assim, para nos determos apenas no exemplo maior e mais típico, a decadência de Roma não resultou senão da perturbação social produzida pela política do imperialismo, sempre mortal para uma nação, porque um ponto há em que o dominado excede as forças do dominador, e ele nunca sabe parar nesse ponto, tão certo resulta do dominar, como do coçar e comer do prolóquio, que tudo está no começar. Mas a política do imperialismo não foi senão um produto da própria política típica de Roma no auge do seu prestígio, nem foi, ela, um elemento novo, senão na proporção em que trouxe elementos novos. O mesmo se não dá com a era das máquinas na nossa civilização. O internacionalismo, por certo, estava criado com as descobertas dos portugueses, o espalhamento de cultura da renascença italiana, e o princípio das invenções (propriamente tais), como a pólvora, a imprensa, que vieram dar começo à facilidade da vida de relação entre as nações da Europa.

Assim, a era das máquinas produziu, nos indivíduos da Europa, um individualismo excessivo, uma ânsia feroz de viver em toda a extensão a vida individual, um abandono correspondente e concomitante, resultante do senso moral, das prisões

da religião, dos chamados preconceitos que haviam sido a base da vida nos séculos anteriores.

Adentro da vida das nações, encarando agora, não já os indivíduos, nem as nações na relação entre umas e outras, mas cada uma adentro de si, como sociedade, outro foi o fenómeno resultante. Ele foi a crescente separação de classes. O fenómeno industrial alargou o intervalo natural entre o capital e o trabalho; o aumento de cultura alargou o intervalo entre o povo de educação e a aristocracia do pensamento; e o acréscimo constante da democracia, inevitavelmente produzido pela criação de proletariados cada vez mais hábeis e conscientes, veio pôr de pé todas as reacções tradicionalistas e aristocráticas contra esse acréscimo.

1916?

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.

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