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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Mas, perguntar-se-á talvez, como acomodar este princípio...

Mas, perguntar-se-á talvez, como acomodar este princípio com o da interdependência de funções que limita e integra na vida o princípio, correlativo, da divisão do trabalho social? A resposta é simples. A interdependência das funções heterogéneas da vida social não é do âmbito da consciência humana; pertence, antes, à parte da vida social que é inteiramente pertença das forças naturais que subjazem toda a actividade do homem. O sapateiro, quando faz botas e sapatos, e só botas e sapatos, não está exercendo esse mister com a consciência social de que funciona dentro do princípio da divisão do trabalho social, e de que entre esse mister e outros há uma interdependência. O político, quando faz a sua política, não pensa de momento senão nas suas ambições pessoais e, por vezes, no destino do país que pretende governar; não lhe ocorre, senão em momentos de reflexão, não propriamente políticos, portanto, que está adentro daqueles dois princípios, de que se trata, da vida das sociedades.

Por isso o artista, como estes outros membros da vida social, de quem acabámos de falar, não tem senão que exercer a sua arte, curando de a exercer tão bem como possa. Todas as outras considerações lhe devem ser alheias: e assim cumpre o princípio da divisão do trabalho social, e cumpre-o tanto melhor quanto menos deixar entrar para a sua arte elementos de preocupação com tudo quanto a não seja. Com a interdependência dessa sua actividade artística com as outras funções sociais ele não tem com que se preocupar, porque isso está fora da esfera de quanto ele possa fazer.

Será, assim, impossível o tipo de uomo universale? Será impossível o indivíduo que seja poeta, homem de ciência e político, por extremo exemplo? Não; isso pode ser, logo que ele seja poeta quando é poeta, político quando é político e homem de ciência quando homem de ciência. Não haverá erro se num desses cargos naturais ele contradisser inteiramente o que exprime nos outros. A contradição está imanente na própria natureza de tais cargos; emana da lei natural pela qual eles existem e se interrelacionam.

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Tão pouco se deve o artista preocupar com a verdade do que descreve. É-lhe lícito escrever um poema onde se violem todas as probabilidades — logo que, é claro, a violação dessas probabilidades não implique directamente uma falha na natureza do poema, como seria, por exemplo, o anacronismo num poema histórico, o erro psicológico num drama, etc. A verdade pertence à ciência, a moral à vida prática. A faculdade do espírito que trabalha na ciência é a Inteligência (Observação, Reflexão). A faculdade que trabalha na vida activa é a Vontade. A faculdade de que depende a Arte é a Emoção. Não tem de comum com as outras nada, a não ser o ser humano como elas.

Quanto à má influência exercida pela Arte na vida prática, isso é um dos delírios dos avinhados da Inteligência. A arte propaganda faz mal, porque, por ser propaganda, é sempre má arte, e, por ser arte, é sempre má propaganda.

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O artista não tem que se importar com o fim social da arte, ou, antes, com o papel da arte adentro da vida social. Preocupação é essa que compete ao sociólogo e não ao artista. O artista tem só que fazer arte. Pode, é certo, especular sobre o fim da arte na vida das sociedades, mas, ao fazê-lo, não está sendo artista, mas sim sociólogo; não é um artista quem faz essa especulação é um sociólogo simplesmente.

1916?

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.

 - 199.