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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Existir é estar adaptado a um meio

Neo‑rom. or Answer to A. P.

Existir é estar adaptado a um meio.

Estar adaptado a um meio quer dizer: (1) poder tirar desse meio o que é necessário para a manutenção da vida; (2) poder evitar, de uma ou outra maneira, o que nesse meio prejudique a vida e a dificulte ou ameace; (3) poder seguir as alterações que nesse meio se dêem, de modo a que não se dê uma cessação de qualquer das condições anteriores.

A adaptação ao meio implica, portanto, a capacidade de agir de três maneiras: (1) retirando do meio o que é necessário, e isto quer dizer escolha, no meio, do que convém à vida; (2) podendo furtar‑se a certas condições do meio.

A vida, porém, envolve uma conservação do ser. Adaptação ao meio tem, portanto, de ser norteada segundo a conservação do organismo que vive. Adaptar‑se ao meio envolve, portanto, conservar‑se perante o meio.

Existir é estar adaptado a um meio.

Nesta adaptação há dois factores: (1) o organismo que vive; (2) o meio em que ele vive.

Para que o organismo viva é necessário que as suas relações com o meio não envolvam a destruição do organismo como tal. O organismo como tal é constituído por três factores: (1) a continuidade formal, (2) a coerência, ou coesão, material, (3) a resistência às influências que tendam a alterar essa continuidade formal e essa coesão material.

Perseverar no ser, isto é viver, implica, pois, a tendência para perseverar na continuidade formal, para perseverar na material, para resistir às influências que tendam a perturbá‑las. Destas três funções, que formam, porém, apenas uma, a tendência para a continuidade formal é inconsciente, igualmente inconsciente a tendência para a coesão material — isto em todos os casos, físicos ou psíquicos. A tendência para afastar os elementos que as perturbem é que é necessariamente, e em todos os casos, consciente.

A adaptação ao meio envolve três elementos (supra).

O ente vivo sente o meio como, ao mesmo tempo, (1) necessário à sua existência, (2) oposto à sua existência, (3) coexistente consigo.

Assim a adaptação ao meio envolve um triplo fenómeno. O ente vivo está em relação com o meio como (1) necessário a ele, (2) oposto a ele, (3) coexistente com ele

No ser inorgânico há simplesmente coexistência com o meio. O meio não lhe é nem necessário (excepto no sentido metafísico, aqui não considerado), nem oposto, excepto na linha das formas físicas, de que aqui se não trata.

No organismo, exclusivamente como tal, há simplesmente noção do meio como necessário. A noção do meio como oposto não existe ainda, salvo rudimentarmente talvez. Objectar‑se‑á que o organismo luta contra o meio, pelo menos às vezes assim parece fazer. Mas na realidade, nada disso acontece. O organismo não luta contra o meio, porque lutar contra o meio envolve alteração do meio, envolve esforçar‑se por alterar esse meio. Ora essa função é de ordem necessariamente psíquica. Como tal, um organismo não pode ter essa função. A aparente luta entre o organismo e o meio é apenas a luta pelo necessário nesse meio. Mas a luta contra as coisas que poderão causar a morte; não é essa uma luta contra um meio concebido como oposto? Sem dúvida que o é. Mas, note‑se, não é o meio, aqui, concebido como sempre oposto, mas apenas como oposto naquelas ocasiões em que ele agride a personalidade do organismo.

Onde há vida psíquica começa a noção do meio como oposto; a razão é simples. Só onde há vida psíquica é que há propriamente noção do sujeito e do objecto, que é a base de se considerar o exterior como oposto ao interior.

A adaptação ao meio faz‑se portanto nas três direcções de se considerar o meio como (1) coexistente, (2) necessário ao ser, (3) oposto ao ser.

No inorgânico, como há simplesmente coexistência com o meio, não há adaptação nenhuma.

No orgânico, onde há a noção do meio como necessário, a adaptação consiste em retirar do meio o necessário para a conservação do organismo e em evitar no meio o que seja a esse organismo prejudicial.

Desde que a vida psíquica se acentue, a adaptação começa a incluir o elemento de adaptação ao meio como oposto. Que espécie de adaptação é essa?

É uma adaptação que envolve (1) alteração consciente do meio. Já há aqui, pois, um novo fenómeno; a adaptação do meio ao indivíduo, não do indivíduo ao meio. Ao passo que no orgânico, onde o meio é concebido como necessário, a adaptação é toda ao meio. O organismo altera‑se, move‑se, age, para se pôr de acordo com as condições do meio que lhe sejam úteis. Mesmo processos aparentemente complicados, aparentemente envolvedores de alteração do meio, como nas abelhas, nas formigas, nos castores, são meros aperfeiçoamentos de adaptação seguindo a noção do meio como necessário. Há alteração do meio apenas no sentido do meio, como há alteração do indivíduo no sentido do indivíduo. Mas o homem que se veste por causa do frio altera‑se em relação ao meio, não no sentido do seu organismo (o que seria se neles crescesse pêlo) mas noutro sentido, empregando o próprio meio externo para se vestir.

No estado psíquico inferior ao homem há alteração do meio, mas no sentido do meio. Eis a diferença fundamental.

A adaptação do psíquico ao físico parte, é claro, do fenómeno fundamental relacionante do físico e do psíquico, a saber, a oposição entre os dois. Para a vida psíquica e física, o exterior é o oposto.

1912

Textos Filosóficos . Vol. I. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968 (imp. 1993).

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