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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

A questão da arte moral ou imoral...

A questão da arte moral ou imoral — se a arte deve ser “art for art’s sake”, independentemente da moralidade — , apesar de muito simples de solução, não tem deixado de ocupar desagradavelmente muito pensador, especialmente dos que desejam provar que a arte deve ser moral.

Em primeiro lugar demos inteira razão — é evidente que a tem — aos estetas; a arte tem, em si, por fim só a criação de beleza, aparte considerações de ser moral ou não. Se isto é assim quem manda pois à arte ser moral? A resposta é simples: a moral. Manda-o a moral porque a moral deve reger todos os actos da nossa vida e a arte é uma forma da nossa vida. Têm errado aqueles que têm querido achar uma razão, dentro da própria Natureza da arte, para a arte ser moral. Não existe essa razão onde a procuraram. A arte, qua arte, tem por fim apenas a beleza. A razão que a manda ser moral existe na moral, que é exterior à estética; existe na natureza humana.

A arte tem duas feições: a feição puramente artística e a feição social. A feição artística é criar a beleza — nada mais. Como a beleza é uma coisa independente do consenso humano (apesar de julgada por ele), como a beleza em si, digamos, é independente de opiniões, a arte na sua (...) social nenhum outro fim tem que a criação da beleza, sem outra consideração moral ou intelectual.

Mas a arte tem outra feição. É a feição social. O artista é um homem e um artista. Puramente artista a sua obra, já o dissemos, tem só por fim criar a beleza, só uma responsabilidade — perante a Estética. Mas o artista vive em sociedade, publica as suas obras de arte. Vive em sociedade como artista e vive em sociedade como homem. Como artista o seu fim é um só: agradar. Como homem o seu fim é um só: obter glória. Vemos pois que o artista mostra-se-nos sob 3 feições: como puramente artista (não tendo outro fim que criar a beleza), como ao mesmo tempo artista e homem (querendo ver essa beleza que criou admirada), e finalmente como homem (desejando a glória, no que é comum aos outros homens, geralmente a todos). O primeiro sentimento é puramente impessoal; o segundo é entre pessoal e impessoal — o desejar ver admirada uma obra de arte, conquanto sua, não é inteiramente egoísta; o terceiro é inteiramente pessoal.

Cremos ter dado, nestas palavras, a solução definitiva do problema.

Ora, segundo estas 3 feições do artista, está ele submetido a diversas leis. Como puramente artista nenhuma outra lei tem que não seguir a estética. Mas já buscando agradar se tem que submeter a outras leis; a natureza da humanidade é uma só, não se divide em estética, moral, intelectual, etc. Só a Estética personalizada é que poderia apreciar uma obra de arte sob o ponto de vista puramente estético. A humanidade não; o amor da beleza é fundamental na sua alma — é arte; mas não só isso reside nela, não só com isso critica e aprecia. Outros elementos entram inevitavelmente essa apreciação. Um grande poema revolucionário agradará mais a um republicano do que a um conservador, admitindo em ambos, quanto a qualidades críticas, a mesma dose de estética.

Os homens não apreciam só esteticamente, apreciam segundo toda a sua constituição moral. Por isso coisas grosseiras impuras, lhes desagradam, não na parte estética neles, mas na parte moral que não podem mandar embora de si.

1914?

Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.

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