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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

DA IMPOSSIBILIDADE DE UMA CIÊNCIA DO LEXICON

DA IMPOSSIBILIDADE DE UMA CIÊNCIA

DO LEXICON

Aos etimólogos.

There are more things in heaven and earth, Horatio,

Than are known of in your philosophy.

                                (Shakespeare — Hamlet).

Certum est quia impossibile est.

                                 (Tertuliano).

                                I

Compreender uma coisa é fazer dela uma ideia que seja susceptível de definição positiva e completa. Por definição positiva entendo o poder‑se dizer duma coisa o que ela é, e não somente o que ela não é, como acontece por exemplo, com o infinito. Por definição completa entendo uma que inclui todos os atributos da coisa definida. Se um teista, definindo Deus, dissesse que ele «é a causa do mundo», daria uma definição incompleta, pois o ser causa é apenas um atributo; definindo Deus apenas como uma causa não daria o teista sequer uma ideia negativa do que considera a sua essência.

                                II

Quanto à nossa compreensão do mundo exterior quatro hipóteses existem:

1ª — Não compreendemos nada, nem viremos a compreender.

2ª — Compreendemos só parte das coisas; a outra parte ignoraremos sempre.

3ª — Não compreendemos tudo actualmente, mas a ciência nos dará essa compreensão.

4ª — Compreendemos tudo.

Examinemos em primeiro lugar esta quarta hipótese. Se compreendemos tudo, não há necessidade nem possibilidade de ciência e de filosofia, não há motivo para discussão. Ora a ciência e a filosofia não só existem, mas têm progressos que são talvez indefinidos. Logo não compreendemos tudo.

Mas a este argumento pode‑se fazer uma objecção: O objecto de ciência não é as coisas, pois elas são exactamente como nós as vemos, mas as ligações e as relações que existem entre estas coisas, e que têm de ser investigadas, pois não caem sob a nossa percepção imediata. Ora esta já não é a quarta, mas sim a terceira hipótese, que assim podemos expor: «Conhecemos a essência das coisas, mas não completamente as suas relações; à ciência, contudo, é possível a completa explicação destas».

Há ainda uma outra fase da terceira hipótese, que nos diz que não compreendemos actualmente a essência das coisas, mas que pela ciência a compreenderemos.

A mesma crítica fere ambas as teorias, das quais uma sustenta que compreendemos as coisas, e a outra que as viremos a compreender. Seguindo esta hipótese nas suas duas formas, ou já compreendemos ou a ciência nos fará compreender as ideias de infinito e de eterno que são tão científicas (eternidade da matéria), como metafísicas e teológicas (imortalidade da alma). Presentemente não as compreendemos. De mais a mais é evidente que o raciocínio e a observação nunca podem mudar coisa alguma à nossa percepção directa das coisas; o infinito e o eterno são por sua natureza, e pela nossa, incognoscíveis. O desconhecido à percepção nunca se pode tornar conhecido. A ciência pode explicar, mas não fazer compreender. Provar que estas ou aquelas são as razões das coisas, as essências das coisas, de forma alguma nos faz ter delas uma ideia positiva e completa.

A este argumento pode fazer‑se uma objecção grave: O infinito e o eterno não são coisas, são da natureza das relações entre as coisas — da causalidade, da finalidade, etc.

Examinemos a questão com simplicidade. O infinito e o eterno ou são coisas, ou são nadas, ou são da natureza das relações entre as coisas. Se são nadas, não há tempo nem espaço; pois que, a haver tempo e espaço, o limite é impensável. Seja tudo um sonho, ainda assim tempo e espaço terão uma existência relativa, uma existência, quanto a nós, suficiente. Havendo pois tempo e espaço, o infinito e o eterno não são nadas. Temos agora a decidir se o infinito e o eterno são coisas, ou se são relações, ou da natureza destas. Esta questão entendo deixar para mais tarde; basta agora mostrar que, quer sejam coisas quer relações, ficam fora da terceira hipótese em ambas as suas formas. Se o infinito e o eterno são da natureza das relações, são, segundo a primeira forma desta hipótese, o que viremos a conhecer, segundo a outra o que já conhecemos. Se eles são coisas, são, segundo a primeira forma, o que já conhecemos, e, segundo a outra, o que viremos a compreender. Ora, como todos sabemos, e como acima já disse, o infinito e o eterno nem são compreendidos nem compreensíveis.

Tratemos agora da primeira hipótese, que tanto pode ser a do cepticismo, que é uma espécie de idealismo prematuro, como do idealismo absoluto. Diz o céptico: «Apenas julgo saber». Ora já aqui temos uma coisa certa; sabemos que apenas julgamos saber. Se sabemos isto sabemos alguma coisa. Dizer que é uma ilusão o que sabemos é o mesmo que dizer que as coisas não são como nós as vemos, mas têm por realidade uma existência diferente daquela que aparentam ter. (A realidade do mundo sensível pode ser contestada; mas não se pode contestar que haja uma realidade. A ideia de realidade é equivalente à ideia de ser, à ideia de verdade. E se há uma coisa que se não pode negar, é esta: que o ser existe. É um juízo analítico «a priori», e destes o mais elementar. «Nous avons une impuissance de prouver invincible à tout le dogmatisme. Nous avons une idée de la vérité invincible à tout le pyrrhonisme». Pascal, «Pensées», a. 6, n. 9). Ora esta a segunda hipótese.

O mesmo acontece com o idealismo absoluto que tem por conclusão aquilo a que o cepticismo se reduz: que as coisas não são como nós as vemos nem têm a existência que nos mostram ter. A conclusão é a mesma — aquela contida na segunda hipótese.

Acabámos de ver que as três hipóteses consideradas eram falsas, e que todas elas, eliminando‑se, nos impunham forçosamente a hipótese restante. Esta é na verdade tão evidente, tão universal quer no conhecimento vulgar, quer em ciência, quer em filosofia, que só por ser forçoso provar tudo é que foi necessário prová‑la. É pois a seguinte asserção a única verdadeira: Conhecemos parte das coisas; uma parte ignoramos e ignoraremos sempre.

                                III

Surge agora uma consideração necessária, mais importante e mais difícil, à qual já acima me tinha referido: o incognoscível é imanente às coisas ou não é? Quero dizer, uma coisa qualquer, por exemplo, uma mesa, não é como nós a vemos e realmente existe uma mesa‑em‑si; ou então existe como nós a vemos e o incognoscível é duma categoria inteiramente diferente?

Vamos tratar de chegar a uma conclusão considerando o infinito e o eterno, isto é, o espaço e o tempo. Notamos em primeiro lugar que o tempo e o espaço não são perceptíveis, isto é, não caem debaixo da nossa sensibilidade; o que se nos apresenta é o objecto extenso e durável, quero dizer, com extensão e duração. Mas, ao mesmo tempo, só podemos compreender esse objecto se ele tiver uma extensão e uma duração. Vemos portanto que o tempo e o espaço, assim como a forma, a cor, o peso, etc., não sendo coisas, mas sendo contudo necessários a elas para que as compreendamos são atributos gerais, ou condições de sensibilidade.

Ora estes atributos servindo a todas as coisas e as coisas manifestando‑se diferentemente através desses atributos, é forçoso conceder que elas têm uma parte sua pela qual se diferençam «a priori». — Um lápis, por exemplo, e uma cadeira têm ambos forma, extensão, peso, etc.; mas há um «quantum» na forma, um «quantum» na extensão, um « quantum» no peso, que fazem estas duas coisas diferentes por meio dos mesmos atributos. — O incognoscível é pois imanente às coisas. Chama‑se‑lhe noumenon e phainoumenon à sua manifestação.

                              IV

Vimos que todas as coisas se dividem, por assim dizer, em noumena e phainoumena; o que é o phainoumenon já sabemos; tratemos de considerar mais intimamente o que é o noumenon de uma coisa.

Ora notamos imediatamente que o noumenon não sendo o objecto da sensação há‑de ser por força o objecto da ideia dela.

Mas, objectar‑se‑á, a ideia de uma coisa qualquer — de um determinado homem, por exemplo, dá‑nos esse homem como uma determinada figura no espaço. Isto é um grande erro: é confundir a ideia com a imaginação reprodutiva. Quando me estão falando de um amigo ausente, tenho durante todo esse tempo a ideia dele, não tenho a imagem mental da sua figura. E contudo nada é mais certo de que pela ideia que tenho dele, ele está mais verdadeiramente conhecido em mim de que se eu fizesse uso da memória imaginativa. A imagem mental é necessariamente consciente; a ideia propriamente dita é inconsciente. A ideia, sendo uma e simples, dá a noção única, completa, vivida, se assim se pode dizer, da essência do ideado, por mais complexo que ele seja. A imagem é sempre complexa e incoerente quanto à essência, à personalidade, por assim dizer, do seu objecto.

Continuando esta consideração, a ideia, se materialmente é inconsciente, é por excelência o consciente ideal. Quando me represento pela memória imaginativa um amigo meu, posto que tenha consciência materialmente dessa representação — doutra maneira não a seria — posso estar distraído, se assim o posso dizer, ao ponto de não ter dela consciência ideal, isto é, de não compreender como representação. — Passo distraído por uma rua, vejo um amigo meu e não o conheço. Porquê? Porque tenho consciência de o ver mas n„o de o ver como quem ele é; tenho sensação sem compreensão, consciência material sem consciência ideal.

Sem dúvida, perante o bom‑senso (le gros bon sens) isto é, apenas distracção, falta de atenção; será, mas então ser distraído é ter sensação sem compreensão, a ideia do phainoumenon sem a ideia de noumenon. Uma explicação é a decomposição da outra.

Um dos exemplos que dei refere‑se à imaginação reprodutiva, outro à percepção exterior. Dei ambos para maior clareza, conquanto só um fosse necessário, porque o mundo exterior sendo da natureza da representação — isto é, necessariamente concebido como no espaço, no tempo, na forma, etc., pode‑se denominar uma imagem forte.

Com a ideia acontece o contrário do que vimos acontecer com a sensação e com a representação. Quando me falam de um amigo ausente, sei de quem me falam, logo tenho consciência ideal posto que não material. Quero dizer, compreendo de quem se trata sem ter consciência de compreender. A compreensão é a sua própria consciência.

Vemos por isto que a representação por si nada vale, mas que a ideia por si vale tudo. A representação só tem valor quando é, por assim dizer idealizada — isto é, compreendida, ideada como representação.

Assim concluímos que o noumenon de uma coisa é o objecto da ideia que fazemos dela — ou a ideia mesmo, se houver identidade ideal entre o sujeito e o objecto. Em outras palavras, e como provámos o noumenon duma coisa é aquilo cuja ideia retirada a essa coisa retire a própria ideia dela.

                                V

Como nesta dissertação terei de aplicar a teoria que exponho ao dicionário, e como a palavra dicionário se refere a uma generalidade, tenho agora que considerar se existe noumenon da generalidade, se há generalidade noumenal, como há generalidade phainoumenal.

Consideremos em primeiro lugar o que é a generalidade material. Diga‑se desde já, é a soma das abstracções dos atributos da coisa particular, a mais a ideia que transcende essa generalidade e a determina como tal. A generalidade material é pois a possibilidade de todas as coisas particulares do seu género assim como o infinito é a possibilidade de todas as extensões, e a forma, considerada em si, a possibilidade de todas as formas. Cada generalidade material contém o infinito, o eterno, etc., pois contém a possibilidade de todas as extensões, durações, etc., duma determinada categoria.

Tudo isto se torna evidente quando consideramos duas generalidades, por exemplo, lápis e mesa, como antes considerámos um lápis e uma mesa particulares. Notamos aqui imediatamente que apesar de tratarmos de generalidades, as duas ideias gerais de lápis e de mesa são inconfundíveis. Cada uma delas contém o infinito, o eterno, o peso‑em‑si, pois contém a possibilidade de todas as extensões, de todas as durações, de todos os pesos; mas transcendendo cada uma destas generalidades há uma ideia que as distingue e diferença inevitavelmente.

Assim como a generalidade material é a possibilidade de todas as coisas particulares do seu género, da mesma maneira a generalidade ideal é a possibilidade de todos os noumena dessas coisas particulares. É também evidente que, sendo noumenon, a generalidade ideal há‑de entrar na regra dos noumena, na conclusão a que chegámos no fim da 5ª secção.

Nada mais é necessário dizer, pois o único objecto desta secção era provar que existe o noumenon geral para aplicar a teoria na secção seguinte.

                                VI

Apliquemos ao dicionário as verdades que acabamos de constatar.

Qual é o noumenon do dicionário? Aquilo cuja ideia retirada ao dicionário retire a própria ideia dele. O que é isto? Não é com certeza o formato, nem a encadernação, nem o papel, nem o tipo; posso retirar tudo isto e sustentar que um sábio tenha um dicionário na cabeça.

O que nós ideamos quando ouvimos dizer dicionário — é esse o noumenon dele. Ora o noumenon, sendo desconhecido, não pode ser objecto de ciência; não o pode ser portanto o lexicon‑em‑si, isto é, o que nos indica a ideia que está ligada à palavra «lexicon». Só podemos conhecer o phainoumenon. Só pode haver ciência da manifestação do «lexicon» — do formato, da encadernação, do tipo, do papel.

Mas é cruel descer do abstracto para o concreto, do ideal para o material, do noumenon para o phainoumenon. Nada sei de papel nem de tipo. Desconheço os formatos. Sinto não poder dizer qual o melhor encadernador em Portugal.

O que são os noumena da vida, das coisas? Trevas, escuridão. O que é o noumenon do dicionário, o seu conteúdo, como dizem alguns, a sua matéria? Trevas, escuridão e nada mais. Compreendeis o Infinito, o Absoluto, o Incondicionado? Compreendeis o lexicon‑em‑si? Dizem os livros santos do Oriente falando do Imanente e do Eterno: «Eu sou a luz no que tem luz, a vida no que vive, etc. Porque não diriam eles, porque não acrescentariam, «eu sou o ser no ser, o não‑ser no não‑ser, a etimologia no etimólogo».

Junho, 1906

Fernando Pessoa.

1906

Textos Filosóficos . Vol. I. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968 (imp. 1993).

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