Os conceitos modernos do paganismo têm de comum,
Os conceitos modernos do paganismo têm de comum, que, mesmo quando são intuições justas, são intuições incompletas. Em todos os casos se tomou um dos membros físicos pela causa espiritual, um dos atributos pela substância. O mal está em que, em nenhum dos casos, a intuição abrangeu mais que, de cada vez, um só atributo.
Assim, os cultores modernos do paganismo têm procurado imitá-lo, ou através duma impassibilidade especial que se lhes afigurou ser o distintivo de espíritos pagãos; ou através duma moral imoral que se lhes (...)
Enfermaram de três cousas: o não poder conceber o paganismo se não em antagonismo, e portanto em relação, ao cristismo; o não poder ver o paganismo na sua substância, mas só através dos seus atributos e, ainda assim, em geral através de determinado atributo só e não da soma deles todos.
Com o cristismo no mesmo tempo que se opõe ao paganismo, descende dele, é fácil conceber o paganismo através de um ou outro dos (...) crististas porque dele derivam; mas o conceito assim formado enferma radicalmente de ter sido concebido adentro do próprio instinto cristista de que se procura desvestir.
Não vou entrar, evidentemente, em uma análise diferencial do espírito pagão e do cristista. Obra era essa para um livro, e não pequeno. O meu propósito, neste lugar, é definir em que é que Alberto Caeiro é o reconstrutor do paganismo, o revelador da sua essência perdida; para o fazer tenho de indicar claramente essa essência, depois em que é que, até Caeiro, se [...] na obra em que ele conseguiu.
Pode imitar-se a impassibilidade suposta pagã.
A objectividade grega, porém, não pode ser, em si, na sua essência, e não nos seus efeitos, imitada por quem a não tenha. Só a pode ter quem tiver os sentidos de natureza constituídos de modo que sinta objectivamente.
Caeiro é mais objectivo que os gregos antigos porque:
a) a sua obra é uma reacção e é por isso uma afirmação mais forte que a original; nem por isso é menos espontânea.
b) (...)
O característico essencial da mentalidade pagã é a objectividade absoluta. Os outros característicos, que lhe têm sido encontrados, são efeitos daquela causa imanente. É um ou outro atributo que, de a Renascença até hoje, os modernos têm visto, e têm procurado imitar.
Uns têm procurado fazer de pagãos, ou imitar os pagãos, educando-se em uma objectividade puramente visual; a objectividade pagã era, porém, não só visual, como, na verdade, temperamental.
Não era só o uso perfeitamente objectivo da vista, ou o de outro sentido qualquer; era a objectividade essencial de que aquelas eram apenas as manifestações nos sentidos.
Era preciso ir mais longe despir-se do hábito cristão de fazer a realidade começar em nós; passar a viver da sensação para fora, e não da sensação para dentro, como é nosso hábito em Cristo.
Ora isto, mesmo que alguém o houvesse visto, não o poderia fazer qualquer, por um esforço qualquer de inteligência ou de disciplina. Era mister nascer com uma organização interior do espírito adaptada a ter, espontaneamente, uma sensibilidade assim.
Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença,
1994.
- 184.Prefácio a Caeiro.