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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Ricardo Reis

OS DEUSES: DEFESA DELES

OS DEUSES: DEFESA DELES

Temos, como único dado sintético da experiência, a realidade exterior como realidade concreta; o nosso espírito, embora possa ser real, não nos é dado como realidade, mas apenas como meio de conhecer a realidade. Não temos o direito de afirmar que é realmente real o que é, não a realidade, mas apenas um meio de a conhecermos.

De três maneiras trabalha o espírito no conhecimento da realidade. Certas faculdades suas andam envolvidas directamente nesse conhecimento: são as faculdades de percepção e de reminiscência, por exemplo. Outras faculdades, sem andarem envolvidas nesse conhecimento, criam para nós maneiras de o utilizarmos. São as faculdades de raciocínio. Outras ainda, o último grupo, servem o fim de nos repousarem da realidade: são as faculdades de ordem imaginativa, que criam outra realidade, que nós sabemos fictícia, mas que deleita por não ser aquela que nos é quotidiana, e por ser uma realidade que é nossa, que nos não é imposta. Esta divisão nas faculdades do espírito não é minha apenas; Bacon a formou, e nela deu apoio ao seu sistema de classificação das actividades humanas e intelectuais.

O terceiro grupo de faculdades — o das imaginativas — serve o fim de agirmos sobre a realidade para melhor nos acomodarmos a ela. Daí as artes várias, quer as do artíficio, quer as do artista, a quem liga (...)

As imagens, as presentações — toda a espécie de ideias que podemos designar por concretas — formam a substância da primeira sorte de actividade. Estas ideias, mais ou menos — consoante a perfeição e a normalidade aproximativa do cérebro que as recebe — correspondem à realidade verdadeira.

A segunda espécie de faculdades, as intelectuais, trabalha com as ideias abstractas. Não correspondem estas — pelo que sabemos — a uma realidade qualquer; o género de pensamento, cuja substância elas são, não tem por fim reproduzir a realidade, porém apenas adaptá-la a nós, que somos, por imperfeitos, erróneos. Sem as ideias abstractas não haveria, a bem dizer, a linguagem, sem a qual não comunicaríamos nem seríamos homens. As ideias concretas existem para nos dar a Realidade; as abstractas para nos dar a Utilidade.

As ideias, de espécie intermédia, que constituem a matéria da imaginação, nem correspondem a uma realidade, como as ideias concretas, nem, como as abstractas, deixam de corresponder a ela. Nem são, como as primeiras, ingenitamente verdadeiras; nem, como as segundas, organicamente falsas, e verdadeiras só em relação a nós, e a serem usadas. Não são reais porque não vêm pelos sentidos, por onde nos vem a realidade; mas não são irreais, porque a sua natureza é análoga à dos objectos que os sentidos nos dão, e, quando as empregamos, produzimos coisas que são reais, como quando, inventando um aparelho, uma máquina, o executo, e ele passa a ser uma coisa real, e una, ainda, adentro das coisas reais. A imaginação combina o real para o renovar humanamente. A criança que, divertindo-se, sotopõe uma pedra sobre outra pedra, pratica um acto símplice de artista, porque, embora sem gosto, combina coisas reais em a realidade.

s.d.

Poemas Completos de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Recolha, transcrição e notas de Teresa Sobral Cunha.) Lisboa: Presença,

1994.

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