[Esboço para inquérito literário]
Presumo, meu prezado confrade, que menos interessará aos fins do seu inquérito a minha opinião como exclusivamente minha, do que como propriamente representativa daquela corrente na literatura portuguesa a que eu pertenço. Por isso, em vez de lhe falar de mim, como seria certo que eu fizesse, se atendesse à direcção dos seus quesitos, passo a falar-lhe de Orpheu e do Movimento Sensacionista.
Mas antes que lhe fale deles, preciso por, como preliminares, duas advertências. Embora — como disse — eu vá falar interpretando a direcção do movimento sensacionista, não devo deixar de apontar que a interpretação é minha, que, embora eu a julgue justa, pode ser errónea, que por certo alguns dos meus camaradas não concordarão com alguns dos meus pontos de vista, nem talvez com o conjunto da minha interpretação. Embora intérprete, sou sempre eu a falar. Não acho escusada esta advertência, porque, a não fazê-la, poderia porventura concluir-se que o que vou expor fosse combinado em comum com os que estão comigo na novíssima corrente literária portuguesa.
Outra advertência ainda me compete fazer. No decurso dos parágrafos que seguem terei muitas vezes ocasião de empregar a palavra «arte». Preciso explicar que essa palavra é por mim empregada como sinónima de «literatura», e não num sentido mais lato, que o meu critério estético não admite. Por certas razões, que seria descabido expor aqui, eu considero a literatura como a única verdadeira arte, e as outras «artes» todas como o resultado de sensibilidades incompletas: a pintura,
escultura, a arquitectura, por exemplo, como produtos de um incompleto desenvolvimento mental, em que as qualidades de visualização não estão subordinadas ao domínio da inteligência, de modo que não funcionam, como deve toda a sensibilidade para ter um perfeito e humano equilíbrio, através da inteligência, mas independentemente dela, e com outras formas de expressão que não as coadas através da ideia. Por isso não admito que fora da literatura haja realmente arte; tenho as outras artes por representativas de um nível humano inferior ao actual, mas tenho-as por imorredouras, porque haverá sempre gente que mais se satisfaça com essas sub-artes, que com a, essencialmente aristocrática e difícil, arte literária. Para a plebe da sensibilidade existem as artes vitais — a dança, o canto, e a representação teatral. Para a burguesia da sensibilidade existem as artes como a pintura, a escultura, a arquitectura, e, um pouco menos e intermédia, a música. Para a aristocracia da sensibilidade, existe apenas uma arte: a literatura, resumo de todas, transcendentalizando-as através da ideia.
(. . .)
Da direcção tomada pela literatura europeia creio poder prever-se o seguinte: Continuará havendo, porque haverá sempre, a literatura que não vale nada, e que é feita com certo relevo pelas criaturas de cultura que se dedicam a escrever — o Anatole France, os (...) e todos os outros fabricantes de coisas necessárias para a leitura corrente, mas que nada trazem de novo à arte, nem de rico ao pensamento (à consciência da vida).
Creio que todo o futuro da arte europeia está no movimento sensacionista.
Preciso explicar, agora, o que é aquilo a que chamo o Movimento Sensacionista.
A uma arte assim cosmopolita, assim universal, assim sintética, é evidente que nenhuma disciplina pode ser imposta, que não a de sentir tudo de todas as maneiras, de sintetizar tudo, de se esforçar por de tal modo expressar-se que dentro de uma antologia da arte sensacionista esteja tudo quanto de essencial produziram o Egipto, a Grécia, Roma, a Renascença e a nossa época. A arte, em vez de ter regras como as artes do passado, passa a ter só uma regra — ser a síntese de tudo.
Que cada um de nós multiplique a sua personalidade por todas as outras personalidades.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
- 122.Inquérito literário organizado por Eurico de Seabra, em 31 de Abril de 1916