REGRESSO DOS DEUSES: Estética [b]
REGRESSO DOS DEUSES: Estética
Objectar-se-á, sem dúvida, que, havendo sentimentos que são vagos, sentimentos que são confusos, impulsos do ânimo (espírito) que, de confundidos com outros, se nos não apresentam claros, é abusivo exigir do artista que os delineie como nítidos, como qualquer coisa que eles não são.
A resposta a esta observação está na pergunta, se esses estados do ânimo são legitimamente representáveis em arte? O artista subjectivo parte do princípio que o fim da sua arte é exprimir as suas próprias emoções. Critério é esse que o artista objectivo não aceita, e com razão absoluta o não aceita, porque a arte objectiva é que é a arte, por isso que é uma coisa realizada, que passa para fora do artista, e não fica nele, como a emoção que a produz.
De feito, perguntemos, porque é um pensamento confuso, porque é um sentimento vago, por que razão não se apresenta nítido um impulso volitivo? Para todos a razão é uma: é que o pensamento se não pôs em contacto com a realidade, é que o sentimento se não comparou com a sua realização, é que a vontade se não mediu com o exterior.
Uma obra de arte é um objecto exterior; obedece portanto às leis a que estão subordinados os objectos exteriores, no que objectos exteriores.
O artista não exprime as suas emoções. O seu mister não é esse. Exprime, das suas emoções, aquelas que são comuns aos outros homens. Falando paradoxalmente, exprime apenas aquelas suas emoções que são dos outros. Com as emoções que lhe são próprias, a humanidade não tem nada. Se um erro da minha visão me faz ver azul a cor das folhas, que interesse há em comunicar isso aos outros ? Para que eles vejam azul a cor das folhas? Não é possível, porque é falso. Para que eles saibam que eu vejo azuis as folhas? Não é preciso porque não tem importância nenhuma. O mais que o fenómeno é curioso, e o curioso é senti-lo; senti-lo sinto-o eu, não os outros. O que há de realmente estético, pois, nas sensações estranhas é que cada um as guarde para si, gozando-as em silêncio, se para tal lhe dá o gozo.
Assim, o primeiro princípio da arte é a generalidade. A sensação expressa pelo artista deve ser tal que possa ser sentida por todos os homens por quem possa ser compreendida.
O segundo princípio da arte é a universalidade. O artista deve exprimir, não só o que é de todos os homens, mas também o que é de todos os tempos. O subjectivismo cristista, além do erro pessoalista, produziu esse outro erro, a preocupação de interpretar a época. A frase de Goethe, bastas vezes citada sobre o assunto, é de mestre; com efeito, um homem de génio é da sua época só pelos seus defeitos. A nossa época deduz-nos da humanidade. Como o artista deve procurar erguer-se acima da sua personalidade, deve procurar levantar-se fora da sua época.
O terceiro princípio da arte é, finalmente, a limitação. Isto é, a cada arte corresponde um modo de expressão, sendo o da música diferente do da literatura, e o da literatura diverso do da escultura, este do da pintura, e assim com todas as artes. Erro crasso, mas recentemente vulgar, é o de confundir os limites das artes. Foi cometido por uma época tão aparentemente ortodoxa como o século dezassete dos franceses. Os poetas como Corneille e Racine aplicaram à poesia a secura de expressão, a nitidez de raciocínio, que são características da prosa. Racine errou como errou Mallarmé. Por um errar por fazer da poesia prosa, e outro por fazer da poesia música, não é menor o erro de um do que o de outro.
Para os sentimentos vagos, que não comportam definição, existe uma arte — a música, cujo fim é sugerir sem determinar. Para os sentimentos perfeitamente definidos, de tal modo que é difícil a emoção neles, existe a prosa. Para os sentimentos que são harmoniosos e fluídos, existe a poesia. Em uma época sã e robusta, um Verlaine ou um Mallarmé escreveriam a música que nasceram para escrever. Não teriam tido nunca a tendência para dizer em palavras aquilo que a palavra não comporta. Pergunto ao maior entusiasta dos simbolistas franceses se Mallarmé os comoveu tanto como uma melodia vulgar, se a inexpressão de Verlaine chegou alguma vez à inexpressão legítima de uma valsa simples. Não chegou, e se me responderem que preferem para esse fim Verlaine e Mallarmé à música, o que me estão dizendo é que preferem a literatura como música à música. Estão-me dizendo uma coisa que não tem sentido fora de lamentá-los.
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
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