Proj-logo

Arquivo Pessoa

OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
pdf
Fernando Pessoa

... e ainda em grande parte se deriva de nações, como Grécia e Roma,

(...) e ainda que em grande parte se deriva de nações, como Grécia e Roma, que precederam o cristianismo.

Entre as frases que figuram, oficial e extra-oficialmente, na terminologia doutrinal do Estado Novo, há uma que merece especial reparo, não só porque não é clara, senão porque a sua origem pode ser suspeita. É a frase "civilização cristã". Diz-se que nos devemos governar e orientar conforme a "civilização cristã". Diz-se que espalhámos, nós os primeiros, por todo o mundo a "civilização cristã". Diz-se que o que à Europa cumpre é manter, acima de tudo, a "civilização cristã". O que se nos não diz, nem se nos disse, é o que se entende por "civilização cristã".

Ora como a imprecisão verbal não é vício que possa legitimamente ser atribuído, quer ao Presidente do Conselho, quer aos que de mais perto o seguem e com ele laboram, e como todos eles, e acentuadamente o Ministro das Colónias, frequentemente usam daquela frase, convém perguntar que sentido ela comporta, ou se entende que deve comportar. Não é só que o problema em si mesmo é questão que importa resolver: é, mais, que, servindo essa frase frequentemente para definir o teor ou conteúdo da nossa acção imperial, importa sobremaneira esclarecer que conteúdo é esse, para que sobre ele nos não enganemos e contradigamos, estorvando ou confundindo a acção comum que se nos faz mister.

A expressão civilização cristã pode significar a civilização criada pelos países cristãos, e, portanto, a civilização europeia presente, quer em Europa, quer fora dela. Sucede, porém, que essa civilização engloba elementos que não são cristãos, como sejam judeus (em toda a parte), maometanos, budistas, e, enfim, indivíduos de variadas religiões, incluindo religião nenhuma. Sucede, ainda, que grande parte dessa civilização, tal qual a tivemos, e muito mais como a temos, foi produzida por elementos que, como a ciência, nada têm que ver com cristianismo, ou por elementos que, como a cultura filosófica, mais têm sido opositores ou dissolventes do cristianismo que frutos dele. Sucede, finalmente, que a amplitude hodierna da nossa civilização, tanto pelos múltiplos e constantes contactos comerciais e culturais que estabeleceu, como pela universalidade de erudição que em si gerou, criou uma ampla consciência das diversidades religiosas, aprofundou as místicas e as dogmáticas das religiões estranhas, e chegou à conclusão de que o cristianismo, como quer que religiosamente se considere, é socialmente não mais que uma religião entre muitas. E, formada como esta a civilização de agora, todos esses espíritos religiosos colaboram nela, todas essas diversidades de crença e de moral nela se confundem e se precipitam. Deixa de ter sentido actual e real a expressão "civilização cristã". Teremos que dizer, ou "civilização europeia", tirando o nome do continente em que teve origem, material como espiritual; ou "civilização greco-romana", tirando o nome das duas pátrias em cujas lições se fundamentou; ou, mais pobremente, porém com menor risco de erro, "civilização moderna".

O termo "civilização moderna", se se aplica com justeza à civilização que presentemente temos, deixa contudo de ter cabimento quando se queira transferi-lo à civilização que nós, portugueses, fomos os primeiros a espalhar pelo mundo; preciso lembrar [?] que a que espalhámos não era ainda esta; deixa de o ter, porventura, quanto à civilização que é nosso mister continuar espalhando. No primeiro caso, há que considerar que a civilização, como hoje a temos, não existia então como hoje existe; filha dos nossos descobrimentos, não poderia ser mãe deles. E, no segundo caso, tudo é duvidoso.

Se, porém, por civilização cristã se entende um fenómeno religioso, a civilização distintiva do cristianismo, dando os seus componentes não-cristãos como seus simples hóspedes ou asilados, e os seus elementos não-cristãos como matéria religiosamente insignificativa, então há que perguntar ainda: que se entende por "cristianismo"? Entende-se simplesmente a moral universalista e fraternitária que está na base da moral cristã; ou entende-se definidamente a crença na divindade do Cristo; ou, mais dogmaticamente ainda, serve a frase somente de disfarce à ideia de "civilização católica"?

s.d.

Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.

 - 116.