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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

[3] O homem, como aliás todos os animais,

O homem, como aliás todos os animais, tem uma vida psíquica ou mental composta de dois elementos opostos — aquele elemento, vulgarmente resumido na expressão «os sentidos», pela qual entra em contacto com o mundo chamado externo, dele toma conhecimento, e com ele se relaciona; e aquele outro elemento que vai desde a consciência de si à inteligência abstracta, pelo qual entra em contacto com o mundo a que podemos chamar interno — o mundo das suas imaginações, das suas ideias, do seu ser, como o pensa e o sente.

Ambos estes elementos são necessários à vida do homem, e ambos eles são necessários em igual porção, isto é, funcionando com igual intensidade, pois, se assim não for, produz-se um desequilíbrio. Para, porém, haver equilíbrio entre duas coisas, é preciso que entre elas haja uma relação. Para que dois corpos se equilibrem nos dois pratos da balança, é preciso que haja a balança. E isto quer dizer que, no fundo, na realidade, a vida psíquica do homem se compõe, não só dos dois elementos que primeiramente se notam, mas de três — esses e um terceiro a que chamaremos o sentido da relação.

Ora qualquer elemento constitutivo da pessoa humana, ou animal até, é susceptível de existir em graus vários, dos quais os graus médios, embora sejam infinitos, constituem a chamada «normalidade», e os graus acima e abaixo desse, a «anormalidade», a doença, a morbidez. Isto é verdade tanto no corpo como no espírito, com a diferença que no corpo, que é um composto complicadíssimo, temos variadíssimos elementos a considerar, ao passo que na mente, ou espírito, basta que consideremos, dada a simplicidade da sua constituição, os três elementos que a compõem e definem — o sentido objectivo, o sentido subjectivo e o sentido relacional.

Como, por natureza, o sentido objectivo e o subjectivo são opostos, segue que uma exaltação mórbida de um se manifesta, inversa e paralelamente, por uma depressão mórbida no outro, ou vice-versa. O fenómeno é um só — opera em sentidos opostos, nos termos opostos da composição psíquica. O sentido relacional, porém, visto que existe, também é susceptível de doença ou anormalidade; como existe para relacionar os outros dois, o resultado da sua doença será uma perturbação das relações entre o sentido objectivo e o subjectivo, sem que necessariamente haja exaltação de um ou de outro, e correspondente depressão ou exaltação em contrário, a não ser que esse desequilíbrio exista independentemente da doença do sentido de relação.

Temos, assim, quatro tipos mórbidos do homem. O primeiro, em que se exalta o sentido objectivo e o subjectivo correspondente se deprime; o segundo, em que se exalta o sentido subjectivo e o objectivo correspondentemente se deprime; o terceiro, em que o sentido de relação se exalta; o quarto em que o sentido de relação se deprime.

O primeiro, que é normal nos animais, em quem o sentido objectivo supera em muito o subjectivo, é, quando se dá no homem, o idiota ou o imbecil. O segundo é o louco, que é essencialmente a criatura cuja vida subjectiva se exalta, a ponto de ele perder a noção objectiva das coisas. O terceiro é o homem de génio, que o génio a meu ver, e por este raciocínio, é a exaltação mórbida do sentido de relação, exaltação mórbida que tem o curioso efeito de produzir um excesso de equilíbrio, uma doença de lucidez só lucidez. O quarto, enfim, é o criminoso. O criminoso, direi então, é um idiota relacional.

O criminoso não é o louco, embora possa ser louco, pois, como disse, pode coexistir uma doença do sentido de relação com uma doença dos sentidos objectivo e subjectivo. O criminoso não é o idiota mental, embora, pelo mesmo motivo que no outro caso, possa ser idiota mental. O criminoso raríssimas vezes, se alguma, poderá ser um homem de génio, no verdadeiro sentido deste termo, pois, como expus, o crime se baseia precisamente no fenómeno mental contrário de aquilo em que se baseia o génio. O que pode haver é momentos, fenómenos ocasionais, de depressão do sentido de relação, como os pode haver no homem normal.

Creio, aliás, que o único caso onde se possa encontrar qualquer coisa parecida com a conjugação do génio autêntico e do crime, é em Benvenuto Cellini.

Ora todos estes fenómenos que descrevi podem ser orgânicos ou episódicos. Certas circunstâncias de educação, de meio, e outras mais ocasionais em muito menor grau, podem, até certo ponto, fazer do homem, que salvo elas seria normal, um imbecil. Certas circunstancias, já mais fáceis de produzir, podem fazer de um homem normal um louco. Outras circunstâncias, como certos estimulantes, certos momentos de exaltação espiritual, e outras assim, podem produzir num cérebro não genial faíscas do que, se fosse constante, seria génio. Tal homem, naturalmente normal, e portanto banal, mas inteligente, terá um momento em que escreve um soneto que fica, único dele, numa antologia. Tal outro — e isto é mais vulgar — terá um dito de espírito que mais vulgarmente atribuiríamos a um espírito realmente genial. O dito de espírito é, até, um dos exemplos curiosos do raro fenómeno do génio ocasional — e é de notar quantas vezes nasce do estímulo da sociedade, do vinho, e de outros assim.

Do mesmo modo, como todos sabemos, há circunstâncias ocasionais que podem fazer do homem, que diríamos normal e que de facto o é, um criminoso. Tal homem, normalmente moral mas fraco, praticará um desfalque sobre a pressão de circunstâncias desvairantes e da oportunidade traiçoeira. Tal outro, não menos normal, matará a mulher num acesso de raiva contra uma traição. Estes casos, não sendo inteiramente raros, são-no todavia mais do que julgamos. Em muitos casos de crime aparentemente ocasional, encontramos, se procurarmos bem, um fundo de anormalidade, talvez vago, talvez escasso, mas que certa circunstância ocasional violenta conseguiu erguer à superfície. O que distingue, contudo, e a todos será evidente, o criminoso-nato (chamemos-lhe assim) do criminoso ocasional, embora neste haja um vago fundo mórbido, é uma de três coisas: a desproporção entre o estímulo e a reacção criminosa; a reincidência constante no crime; e a premeditação.

O crime, porém ocasional ou não, é sempre crime. Como, porém, tanto o crime ocasional (precisamente por ser ocasional, mostra mais claramente e mais destacadamente, visto que se dá sobre um fundo não criminoso ou pouco criminoso, a mecânica do crime) como o homem normal, ou quase normal (em que se dá) nos mais compreensíveis que o anormal, a melhor maneira de estudarmos a mecânica do crime, e, derivadamente, a alma do criminoso, é fazermos uma análise de como surge, numa alma normal ou quase, o impulso realizado ou tentado para o crime.

A desproporção entre o estímulo e a reacção criminosa é característica do criminoso louco, isto é, ou do louco que se torna criminoso, ou do criminoso em que há um elemento concomitante de loucura. A constância na prática do crime é característica do criminoso idiota, ou do idiota malévolo, tipo diferente, ou do criminoso em que há um elemento concomitante de inferioridade mental. É no crime com premeditação que surge o exemplo perfeito, direi, até, o exemplo puro do criminoso. Como neste tipo de criminoso se não alia à sua idiotia relacional nenhum fenómeno rnórbido proveniente dos sentidos antagónicos, e seu desequilíbrio próprio, como deste tipo de criminoso deriva a doença que o faz criminoso, exclusivamente de uma perturbação do sentido de relação, não havemos de estranhar que haja crimes de relação em que há qualquer vaga coisa que parece génio. É que em toda a doença há qualquer coisa de esboçadamente pendular — no génio a frequente insociabilidade, que é a mesma coisa, salvo que em menor grau, que a base do crime; no criminoso premeditado a exaltação e clareza de organização que por vezes o converte num verdadeiro estratégico, se bem que num campo limitado. E, a propósito mas entre parênteses: mais tarde terei que tratar do estratégico mais detalhadamente.

s.d.

Ficção e Teatro. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986

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«O Caso Vargas». 1ª publ. in A Novela Policial-Dedutiva em Fernando Pessoa . Fernando Luso Soares. Lisboa: Diabril, 1976