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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Em muitas matérias, e principalmente naquelas,

Em muitas matérias, e particularmente naquelas, entre as quais figura a política, que têm

contacto com o amplo público, as palavras costumam servir para significar outra coisa. Quer isto dizer que as palavras passam a ter ordinariamente um sentido, ou até mais do que um, que ninguém poderia desprevenidamente deduzir da etimologia, ou sequer da significação corrente, dessas palavras.

Uma dessas palavras é nacionalismo; liberalismo é outra. A tal ponto se desviaram, no uso e significação corrente, do uso e significação que legitimamente lhes caberia, que passaram a ser tidas como significando coisas opostas, quando, visto que se reportam a coisas inteiramente díspares, não pode haver entre elas, ou o que significam, qualquer coisa que se pareça com oposição.

Por nacionalismo legitimamente se entende um patriotismo que, excedendo o simples patriotismo instintivo e natural de amar a terra onde se nasceu, e a defender por manifestações externas como a palavra e o combate, a procura defender intelectualmente contra a invasão de estrangeirismos que lhe pervertam a índole ou de internacionalismos que lhe diminuam a personalidade.

Por liberalismo legitimamente se entende aquele critério das relações sociais pelo qual cada homem é considerado como livre para pensar o que quiser e para o exprimir como quiser ou pôr em acção como entender, com o único limite de que essa acção não tolha directamente os iguais direitos dos outros à mesma liberdade.

Como é de ver, estes dois conceitos — nacionalismo e liberalismo — em nada se opõem, em nada se podem opor, um ao outro. O primeiro gira em torno do conceito de Nação — não, note-se bem, de Estado —; o segundo gira em torno do conceito de indivíduo — não, note-se bem, de cidadão. E assim é que o nacionalismo pode ser liberal ou anti-liberal, o liberalismo nacionalista ou anti-nacionalista.

Conquanto, porém, nada haja entre estes dois conceitos, pelo qual eles entre si intrinsecamente se possam relacionar, sucede todavia que têm extrinsecamente dois pontos comuns. Em ambos casos se trata da valorização de qualquer coisa; em ambos casos se trata da defesa de qualquer coisa. Os dois conceitos têm pois ainda que em campos diferentes, o mesmo ritmo ou tipo de vibração. O nacionalismo procura a valorização da Nação; o liberalismo procura a valorização do Indivíduo. O nacionalismo busca defender a Nação das influências que a podem desintegrar; o liberalismo busca defender o Indivíduo das influências que o podem diminuir. E assim como o nacionalismo se opõe ao separatismo (ou regionalismo separatista) ao estrangeirismo e ao internacionalismo, assim também o liberalismo se opõe às incursões que sobre o indivíduo podem exercer as influências anti-individuais — a família, a classe, o Estado.

Esta comunidade do que chamámos ritmo de vibração pode ligar, e efectivamente liga, extrinsecamente, os dois conceitos. Uma nação é composta de indivíduos, pois que o indivíduo é a única entidade fisicamente real que humanamente existe, visto que nem a família, nem a classe, nem o Estado, têm cabeça, nem sequer pés. De sorte que a valorização do indivíduo envolve necessariamente a valorização da nação; e a valorização da nação, por seus reflexos dinâmicos sobre o indivíduo, paralela e semelhantemente implica a valorização deste.

Cumpre, chegados aqui, que façamos uma distinção clara e escrupulosa entre Nação e Estado. Se o pensar claramente fosse uma natural disposição humana, não haveria sequer que pensar em estabelecer tal distinção. Infelizmente a clareza do pensamento, assim como a perspicuidade na expressão dele, são, ao que parece, produtos de espécie aristocrática, embora, felizmente, não intransmissíveis ao amplo público.

A Nação é uma entidade natural, com raízes no passado, e, poder-se-ia acrescentar, em linguagem paradoxa mas justa, com raízes também no futuro.

O Estado é fenómeno puramente do presente, tanto que se projecta em, e se consubstancia com, o Governo que esteja, de momento, de posse da actividade desse Estado. De posse da Nação ninguém pode estar, pois não há redes, ministeriais ou outras, com as quais se pesque o impalpável.

A valorização do Estado, longe de se reflectir em o indivíduo ou a nação, valorizando-os, reflecte-se neles somente para os diminuir.

A frase, ou bordão, de Mussolini, Tudo pelo Estado, nada contra o Estado tem a vantagem de ser perfeitamente clara. Diz o que diz. Com ela sabemos onde estamos, embora não queiramos lá estar. A frase portuguesa imitada, Tudo pela Nação, nada contra a Nação , ou quer dizer, velando-se, a mesma coisa que a frase de Mussolini; ou, se quer dizer outra coisa, não quer dizer coisa alguma. Está no mesmo caso que a expressão civilização cristã, à que ninguém ainda conseguiu descobrir qualquer espécie de sentido.

O Estado é simplesmente a maneira de a Nação se administrar: rigorosamente, não é uma coisa, mas um processo. Se compararmos — o que nem sempre é válido ou útil — uma nação a um indivíduo, diremos que o Estado é para a Nação o que, no indivíduo, (...).

Apareceram recentemente à superfície da terra social uns animais chamados directrizes. Definindo mal e depressa, esta palavra quer dizer que qualquer de nós tem que pensar pela cabeça de outra pessoa.

Tal intimava-o ou imposição não pode fazê-la ou pretender fazê-la senão o Estado ou quem nele manda, pois a Nação não se exprime através do Estado mas através dos indivíduos, e mormente através dos homens de génio, que são a concentração individual das forças íntimas da Nação. Ora os homens de génio não impõem directrizes: são-as.

Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.

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