[6] Investiguemos, disse o Dr. Quaresma, qual é a alma do assassino,
Investiguemos, disse o Dr. Quaresma, qual é a alma do assassino, ou seja, quais são os fenómenos de diferença do normal que se passam nessa alma e a fazem tal.
Ora em todo o estudo do anormal seguiremos certos se partirmos do normal, porque este nos é conhecido. Pode parecer difícil partir do normal para o anormal, em geral, e em particular, partir da alma pacífica do homem vulgar para a alma do assassino. Mas não é assim. É fácil, e vulgar, induzir no homem normal o estado de loucura: basta embebedá-lo. É fácil, e vulgar, que se induza no homem normal o estado de homicídio: basta mandá-lo para a guerra. O bêbado procede como um louco, e o soldado procede como um assassino. Em ambos os casos a anormalidade é ocasional. Em ambos os casos a anormalidade é produzida por qualquer coisa externa ao indivíduo — o álcool num caso; a convenção e pressão social no outro. O que temos que estudar é isto: quais são exactamente os fenómenos, pelos quais a bebedeira se aparenta com a loucura? Quais são exactamente os fenómenos pelos quais o soldado se converte no homicida? Conhecidos esses fenómenos, basta que os consideremos como permanentes, em vez de ocasionais, que lhes coloquemos as causas dentro, e não fora, do indivíduo, para termos um conhecimento seguro da alma do louco e da alma do assassino.
Tomemos, para exemplo elucidativo, o caso da comparação da bebedeira com a loucura. A semelhança, postas de parte as diferenças externas, é absoluta: a mesma falta de domínio em si mesmo, a mesma emergência de tendências reprimidas, por essa falta de domínio, a mesma incoordenação de ideias, de emoções e movimentos, ou a falsa coordenação de umas ou de outras. Considere-se por um esforço mental que não é difícil essa bebedeira como permanente: tem-se, por intuição própria, pois todos nós nos embebedamos pelo menos uma vez, o conhecimento íntimo de como funciona a alma de um louco. E temos esse conhecimento nos seus pormenores essenciais — a quebra de inibição, a perturbação emotiva, a falta de relação exacta com o mundo externo.
Consideremos, agora, o soldado. Por que mata o soldado?... por uma imposição de um impulso externo que lhe oblitera por completo todas as suas noções normais de respeito pela vida e pela lei; esse impulso externo pode ser a Pátria, o dever ou a simples submissão a uma convenção, mas o facto é que é, como o álcool que converteu o outro em louco, uma coisa vinda de fora. A guerra é um estado de loucura colectiva, mas nos seus resultados sobre o indivíduo, difere da bebedeira: a bebedeira dissolve-o, a guerra torna-o anormalmente lúcido, por uma abolição das inibições morais. O soldado é um possesso: funciona nele, e através dele, uma personalidade diferente, sem lei nem moral. O soldado é um possesso, ou um intoxicado, ou uma daquelas drogas que dão uma clareza fictícia ao espírito, uma lucidez que não deve haver perante a profusão da realidade.
Direi, até, que não será errado afirmar que os grandes homens de acção são todos possessos, que a verdadeira e sã clareza está somente na investigação científica e no pensamento que se lhe segue — e é curioso que esses misteres mentais, quando continuadamente seguidos, tendem para entibiar a vontade, e indispor para a acção. Em certo modo, todos somos possessos, e a libertação abate-nos como a falta de droga com que nos intoxicávamos.
Ora estes fenómenos que se dão no soldado, e pelos quais o homem normal se converte num assassino, têm uma semelhança acentuada com os fenómenos da hipnose, que é precisamente a intromissão num indivíduo de uma mentalidade alheia à dele. Ora os fenómenos da hipnose são sobretudo fáceis de se dar nos indivíduos chamados histéricos, isto é, nos indivíduos que sofrem da neuropsicose a que se chama histeria.
Não faço grande caso da designação histeria. Podem chamar-lhe outra coisa qualquer, se quiserem. Mas existe sem dúvida nenhuma um estado nervoso de extrema mobilidade e instabilidade, em que uma sugestão exterior forte opera com uma facilidade notável, porque não encontra resistência, nem na inibição, nem numa fixidez qualquer temperamental.
No caso do soldado, há a notar que o indivíduo normal não é histérico, mas a guerra histeriza-o (toda a gente é histerizável), e ao mesmo tempo sugestiona-o.
No caso do assassino, temos que considerar, como no do louco em relação ao bêbado, que o impulso, em vez de externo, é interno. O assassino é pois um histérico sugestionado de dentro.
Ora este «dentro» pode ser uma de três coisas — um impulso passional e ocasional; ou uma disposição íntima do temperamento; ou (chamo para isto a sua atenção!) uma formação mental-emotiva que cria dentro do indivíduo um ser sugestionador.
No primeiro caso, temos o assassino passional, no sentido exacto do termo; quer dizer, o que assassina sob o impulso passional imediato, sem premeditação, por, como diz o povo, perder a cabeça. No segundo caso temos o assassino-nato, o indivíduo em que estão nativamente obliteradas as qualidades morais fundamentais. No terceiro caso temos um assassino a quem os psiquiatras e os criminologistas não têm prestado a devida atenção: o assassino por auto-sugestão prolongada.
Se considerarmos, pois, que o assassino é um histérico superficial informado por um impulso epileptóide, teremos que todo o assassino é um histero-epiléptico.
Nestas neuropsicoses mistas há, porém, que considerar uma coisa: é que é tão divergente a dosagem das duas neuropsicoses componentes que os histero-epilépticos — com outros mistos, os histeroneurasténicos — são de um grande número de classes e feitios.
Temos, assim, três tipos de relação entre a epilepsia e a histeria nos três tipos de assassino. No assassino passional há uma tendência histérica, que, com a epileptização do momento, forma ocasionalmente a histero-epilepsia. No assassino temperamental há exactamente o contrário: há um fundo epiléptico que, com a histerização, por vezes pequena, do momento, forma a histero-epilepsia. No assassino meditado, a histero-epilepsia é radical e, por assim dizer, equilibrada. Não há histerização do momento, não há epileptização do momento: há uma acumulação lenta de impulsos externos, reprimidos na sua reacção imediata, ou de pensamentos que se tornam como impulsos externos.
A mentalidade do assassino premeditador tem uma grande analogia com a mentalidade do estratégico. Todos os grandes generais tem sido epileptóides: isso é verificável nas suas biografias. Mas aqueles que têm sido, propriamente, grandes estratégicos, têm sido nitidamente histéricos também. Isto vê-se nos elementos surpreendentemente femininos que há em Frederico o Grande, de um modo escandaloso, e o temperamento de actor de Napoleão (tragediante! comediante! — lhe gritava o Papa).
Mas dentro da histero-epilepsia propriamente dita, isto é, radical e equilibrada, podemos distinguir três tipos bem diferentes entre si. Ao tipo em que a epilepsia domina a histeria e por assim dizer, a colora. E ao tipo em que a tal ponto se equilibram, que produzem a impressão duma terceira coisa, como o azul e o amarelo, misturados, dão uma terceira coisa, chamada o verde.
Neste crime, dadas as suas características de premeditação e de cuidado na execução, estamos perante um assassino que é um histero-epiléptico radical.
Ficção e Teatro. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986
- 141.«O Caso Vargas». 1ª publ. in A Novela Policial-Dedutiva em Fernando Pessoa . Fernando Luso Soares. Lisboa: Diabril, 1976