Desejo, pelo presente escrito, contraditar os princípios expostos...
Desejo, pelo presente escrito, contraditar os princípios expostos no manifesto, um tanto ou quanto alfabético, que o Governo fez por leitura em 30 de Julho, assim como os fundamentos desses princípios, que se contém no relatório falado do Prof. Oliveira Salazar — bois depois do carro (ou hysteron-posteron, como se diz em retórica) na ordem temporal da exposição do Governo.
Farei a contradição do modo mais breve e mais útil. Não perderei tempo nem lógica na análise do que o Governo diz. Porei a minha tese, e desenvolvê-la-ei logicamente: da sua prova sairá implícita a desprova da tese contrária, que a contida nos documentos de quem manda.
Quero fazer duas advertências preliminares. A primeira é que não importa quem sou. Se eu argumentar, o meu argumento valerá como argumento, e não como meu. Para ter razão não há idoneidade senão a lógica, nem se exige, para se poder argumentar, bilhete de identidade. Escrevi, aliás, em tempos, um folheto defendendo e justificando a ditadura militar em Portugal. Serve isto de explicar que, ao pôr uma tese contrária à do Governo da Ditadura, não ponho uma tese contrária ao Governo da Ditadura. (Esquecia-me de dizer que mantenho o que dizia no folheto já citado.)
A segunda advertência é de ordem mais para reparar. A tese do Prof. Salazar é um apanhado, aliás muito lúcido e lógico de princípios políticos já conhecidos — os da chamada "contra-revolução" ou seja os que distinguem e definem as doutrinas dos chamados integralistas. A minha tese, ao contrário, trará, em seu desenvolvimento, resultados de absoluta novidade. Tendo que expor coisas novas, e sendo o cérebro do público sempre um mau receptor, tenho a desvantagem — quase o dever — de que não serei compreendido. Ao público, ou a qualquer pessoa que pareça público não se pode dizer embora melhor senão o que ela já sabe, isto é, aquilo que é absolutamente inútil dizer-lhe. Ora, muito embora em outros campos do escrever eu cultive deliberadamente o inútil não tem essa agricultura cabimento nesta matéria. Peço por isso ao leitor que me releve o incómodo de lhe dizer o que ele não espera. Se este escrito lhe merecer atenção, peço que lhe mereça uma atenção inteligente. Sem esse esforço antinatural, não vale a pena ler o que se segue nem, lido, se poderá compreender.
Posto isto, entro no assunto, que irei expondo em tantas breves partes ou divisões, quantas exijam a ordem dialéctica do argumento e a disposição da matéria.
Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.
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