[Cartas a João Gaspar Simões - 6 Dez. 1929]
6 de Dezembro de 1929
Meu querido Camarada:
Receberá sem dúvida esta carta com o pasmo sobressaltado de quem recebe uma mensagem de além-túmulo, pois por certo tem por igual a morto o signatário sobrevivente. Tenho diante de mim as suas duas cartas a que devo resposta (à parte o dever-lhe um comentário crítico a um indivíduo incerto que sou eu); uma dessas cartas tem a data de 22 de Outubro, outra a de 8 de Novembro. Que desculpa plausível tem quem lhe envia esta resposta com a data insofismável de 6 de Dezembro?
Aquela leve alienação mental, que é um dos meus privilégios mais Campos, tem estado permanentemente à minha cabeceira, ainda nas horas em que não estou deitado. Não tenho feito nada, e não tenho escrito nada, nem (a prova existe na ausência de prova) a ninguém. Recebi a Presença, e vejo que anunciaram, e bem, a publicação dos volumes da obra de Mário de Sá-Carneiro. Subiu-me a vergonha à máquina de escrever: respondo.
O melhor que há a fazer, como primeiro movimento prático, é eu passar a limpo o volume que figura como primeiro na publicação, ou seja o que consta dos versos – Dispersão e Indícios de Ouro. Irei fazendo isto por estes dias próximos, e desejava saber se preferiam que fosse enviando as páginas à medida que as vou passando à máquina, ou se lhes é melhor que as envie juntas, quando houver transcrito por completo os dois livros de poemas, que formam o primeiro volume das obras.
É este, aliás, o único ponto difícil para a publicação; a Confissão de Lúcio está publicada já, e o Céu em Fogo também. Da Confissão de Lúcio tenho um exemplar além do meu. Da outra obra, Céu em Fogo, não tenho senão o meu exemplar.
Seja como for, isto de momento não importa. O que importa é receberem agora, e sem demora, o material para o primeiro volume. Para a semana começo o traslado.
Referindo-me, agora, à forma de publicação, por o que diz respeito a marcar preços, acho que o melhor é pôr a obra à subscrição em conjunto, a tanto por volume, sendo cada volume pago contra reembolso postal, à medida que for saindo. Em outras palavras, a assinatura é pelos quatro volumes; o pagamento é por volume. É o mais prático. E a orientação deve, a meu ver, ser de, sendo possível, se publicar um volume por trimestre durante o ano que vem, de sorte que, calhando precisamente haver tantos volumes quantos são os trimestres, a obra será publicada toda no espaço de um ano, e com o devido espaçamento.
O preço de cada volume, a meu ver, nem deve ser inferior a 20 nem superior a 30 escudos. Esta opinião é puramente comercial; é dada, naturalmente, fora de qualquer noção do género de apresentação que tencionam dar ao livro. Creio, porém, que a apresentação deve orientar-se para o preço, que não o preço para a apresentação, a não ser que haja uma equivalência de valores.
Em que termos, e de que maneira, vão redigir a circular de pedido de assinaturas? É um ponto importante – é, até, um dos pontos mais importantes – em publicações desta ordem.
O desleixo que atingiu corporalmente a minha resposta a este caso do Sá‑Carneiro, com muito mais razão atingiu a resposta aos casos da Antologia e da colaboração para a Presença. Prometo, porém, enviar em breve colaboração para a Presença. Sobre a Antologia está de pé, firme, dada, a minha autorização; acho preferível não inserir inéditos, mas, se fazem empenho nisso, posso pescar alguns, porventura aceitáveis, no poço da minha indiferença por mim mesmo.
Se falhei em responder a qualquer ponto das suas cartas, diga-me.
Abraça-o, com a reiteração dos pedidos de desculpa que estão nas linhas e entrelinhas da carta que vai acabar, o camarada muito dedicado e grato,
Fernando Pessoa.
Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões. (Introdução, apêndice e notas do destinatário.) Lisboa: Europa-América, 1957 (2.ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982).
- 37.