A situação presente, a chamada República Nova, contrapondo-se...
A situação presente, a chamada República Nova, contrapondo-se por igual à Monarquia e à República Velha, aproveita da intenção instintiva da República Velha o que há de puramente destrutivo, e rejeita o que pretende ser construtivo, isto é, o processo de destruição, a norma em vista da qual se destruiu. E assim a República Nova, aceitando como boa a eliminação da Monarquia, não aceita como boa aquela falsa destruição que consiste em continuar, sem rei, a governar exactamente do mesmo modo. E, aceitando como boa a intenção cultural de destruir a força do catolicismo, reconhece que a eliminação dessa força não pode ser obra governativa senão politicamente — isto é, que o ataque político tem de ser à força política do catolicismo e não à sua força social.
Aproveitando a intenção instintiva da República Velha, aceita dos seus pontos destrutivos apenas os princípios abstractos realizados — a abolição da Monarquia, a separação da Igreja e do Estado, a necessidade abstracta de quebrar a indolência económica do nosso povo.
Mas, aceitando a direcção imposta pela linha nacional do 5 de Outubro, rejeita os processos empregados, corno não só contraproducentes, mas também insuficientes. A República Velha falhou mesmo como fenómeno destrutivo: destruiu mal e destruiu por maus processos.
Destruiu mal porque destruiu pouco. Destruir a Monarquia não é só tirar o Rei: é também, é sobretudo substituir os tipos de mentalidade governantes por outros tipos de mentalidade. E assim, sendo os governantes monárquicos recrutados entre políticos profissionais, bacharéis e caciques, deve a República Nova passar a governar por meio de classes até ali não experimentadas como governantes, porque uma revolução é isso — a substituição de elites, e porque, se a salvação não está nessas classes, é que não está em parte nenhuma. Assim, em vez dos políticos de profissão, passará a governar pelo exército, que é, de espírito, o contrário deles; em vez de bacharéis, empregará comerciantes e industriais; e em vez de caciques, como estes não podem ser eliminados ou substituídos, pois que uma opinião livre de caciques, além de impossível absolutamente, é impossível mesmo relativamente em um país de analfabetos, empregará como solução um sistema de instituições que se furte o mais possível à acção deles, isto é, a República Presidencialista, com inteira separação do Executivo e do Legislativo. Não discuto se, em abstracto, esta forma de República é superior à forma parlamentarista: afirme que é a forma que as circunstâncias de Portugal impõem, pode ser que apenas transitoriamente, ao país. Maravilhosa intuição a do Presidente Sidónio Pais, que, sem ter feito estes raciocínios sociológicos, teve a intuição exacta das conclusões a que eles nos levam, buscando apoio no exército, procurando-o nas classes extra-políticas e esforçando-se por que vingasse a República Presidencialista!
A intenção fundamental das forças nacionais sobre as quais se formou o Partido Republicano, a intenção nacionalmente oculta no 5 de Outubro, e por causa da qual a essa Revolução adveio a simpatia e a benevolência do país, foi operar a transformação política, intelectual e económica do país. Como estávamos decadentes em tudo, a intenção nacional por detrás dos revolucionários de Outubro foi fazer uma reforma geral da nação e essa reforma tendia a exercer-se nas três direcções expostas — a política, a cultural e a económica. De há muito, pela propaganda republicana fora, e por toda a propaganda incertamente oposicionista, esta tripla tendência reformadora vinha sendo marcada. Como, porém, os homens que a marcavam pertenciam ao mesmo meio que os representantes da má política, da incultura e da falsa economia nacionais, quando fizeram a sua propaganda e quando, depois, vitoriosos, a foram pôr em prática, visaram realizar de três maneiras esse triplo intuito. Pensaram resolver a questão política pelo processo simples da abolição da Monarquia; pensaram resolver a questão cultural pelo processo simples da abolição (tal a intenção, sem dúvida) do catolicismo; pensaram resolver o problema económico pelo processo do ataque ao capital. Em qualquer das coisas foram servos da confusão da época e do estrangeiro.
Vindos ao poder, e posta em prática a sua pseudo-reforma, viu logo o país que a abolição da Monarquia não tinha abolido a política monárquica, porque a imoralidade e o caciquismo continuaram. Era a adaptação dos recém-vindos ao meio governativo. Em um país imoral não se pode governar senão imoralmente. É de ordem biológica a razão. Viu logo o país que o problema cultural ficava na mesma, porque os anticatólicos que tomaram o poder eram tão tirânicos como os católicos que os haviam precedido, tão estúpidos como eles e tão incapazes de visão política e de cultura europeia. Viu logo o país que a política contra o capital redundou em prejuízo dos consumidores, em detrimento do comércio, em hesitação para a indústria.
E vendo isto, o país, que é estúpido, virou-se contra os homens da República. É que o país tem a mentalidade dos idiotas e queria milagres. Supunham os portugueses que uma revolução traz benefícios; e supunham bem; mas supunham que os traz logo no dia seguinte e aí mostravam a sua plena (...) Aquelas mentalidades ainda estavam no milagre. Incapazes de pensar cientificamente, não meditaram que o que se segue a uma revolução é a anarquia, anarquia tão profunda quanto o foi a tirania que a precedeu, e contra a qual reagiu essa revolução; e que só depois de ter passado o período anárquico da revolução é que lentamente chega o período das reformas, para o qual, afinal, a revolução foi instintivamente feita. Trinta e um anos durou o período revolucionário da Monarquia Constitucional portuguesa. Oitenta e um anos durou o da República Francesa. Quarenta e oito durou o da Monarquia Constitucional da Inglaterra.
Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.
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