A REPÚBLICA NOVA (Last Chapter)
A República Nova (Last Chapter)
Determinámos que o papel histórico da actual situação é orientar, equilibrar — que não é construir. Não deve, nem pode, construir.
Temos porém que buscar uma fórmula política definida (e não definitiva) para o período de transição que atravessamos.
Construir é criar de novo, é portanto estabelecer uma nova tradição. Enquanto uma nova tradição não aparece temos que nos nortear pela tradição nacional. Norteando-nos pela tradição nacional, temos de o fazer de modo a adequá-la às circunstâncias. Temos que tirar a média entre as circunstâncias actuais e essa tradição.
Qual é a tradição política portuguesa? A tradição verdadeira, entenda-se, verdadeira e geral, representativa do tipo de mentalidade português.
A obra destruidora da República Velha não pode ser renegada, excepto no que, pelo exagero que as suas circunstâncias (...)
A tradição política portuguesa está ligada ao sistema diversamente intitulado monarquia representativa ou monarquia absoluta. O movimento constitucional que começou em 1820 a acabou em 1851 não foi um movimento com qualquer espécie de alma popular. O povo não tinha nem da monarquia absoluta nem dos seus reis nem dos seus governantes aquela razão de queixa que é das revoluções. Nenhuma tirania feudalista, como a de onde emergiu, essencialmente, a Revolução Francesa, os oprimia, nenhum abuso pessoal, como os de Carlos I, que provocaram a Revolução Inglesa, os havia vexado; nenhuma oligarquia corrupta como a contra quem foi feito depois o 5 de Outubro os enlameava.
O movimento constitucionalista não teve alcance nacional e, portanto, não o teve popular. Foi uma manifestação portuguesa de um fenómeno europeu, estrangeiro. Quando muito foi um movimento anticatólico e, mesmo, era da Igreja e da inimixtão do catolicismo com o Estado que derivava a única tirania que o povo, de algum modo, sentisse. Nem, como povo, a sentia, porque arma já então dirigida essencialmente contra as classes médias e cultas, absolutamente separadas do povo naquele estado de decadência, a Inquisição não era motivo senão de um vago ódio popular.
Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.
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