Ao investigar qual seja a verdadeira tradição política de Portugal,
Sidonismo
Ao investigar qual seja a verdadeira tradição política de Portugal, importa, antes de mais nada, definir este conceito de tradição. Ele pode ter três sentidos: ou o que passa, sem quebra, de pais a filhos, como, por exemplo, a língua pátria; ou o que (...)
O despotismo central equilibrado pela descentralização municipalista.
Com o estado perpétuo de guerra, e guerra agónica (?), criado pelos (...), que farão o seguimento, mórbido mas inevitável, das nossas descobertas, o municipalismo desapareceu, para deixar de pé, apenas, e mais forte, o despotismo ou poder absoluto. Quebrando (...) o poder da fidalguia, que mau grado o pouco feudalismo entre nós, ainda assim era uma regionalização, a Monarquia mais aumenta o seu centralismo e o seu poder.
Houve, assim, ruptura de equilíbrio.
Ficando Portugal, assim, reduzido politicamente a um mero poder central, sem vida aristocrática política, porque a aristocracia foi, politicamente, morta por D. João II, e sem vida popular política porque a vida dos municípios, lentamente apagada sob os últimos reis de Avis, veio a extinguir-se dos Filipes para os Braganças — o poder central, decaindo, decaiu politicamente tudo. Houve, com a Restauração, um renascimento do aristocratismo, mas o Marquês de Pombal esfacelou-o novamente, levando ao fim a obra iniciada por D. João Segundo.
Assim, quando o internacionalismo maçónico cindiu Portugal em dois partidos, de instinto atacou a forma política que era a única no Reino — a Monarquia (absoluta). Mas em nome de que classe é que atacou a Monarquia? Não em nome do povo, pois não buscou reconstituir o municipalismo português. Movimento simultaneamente anticatólico (ou anti-ultramontano) e anti-britânico, o constitucionalismo fez cair a Monarquia absoluta, ligada sim ao catolicismo, mas não, ela própria, catolicismo, aliada, sim, da Inglaterra, mas não inglesa.
Foi contra o ultramontanismo e contra a baixeza da m[onarquia] absoluta que o liberalismo se ergueu. Mas propriamente não foi contra a m[onarquia] absoluta. Mas os (...) — povo ou mais — nunca distinguem, em uma instituição, a essência dos acidentes, e tornam uma instituição corrupta por essa instituição, tal qual, não por a corrupção dela.
Se alguém de novo passou a ter força durante o c[onstitucionalismo], foram as classes médias, mas não as classes médias como classes, porém como indivíduos. As classes médias políticas é que passaram a governar. Nem passaram a governar (e isto é importantíssimo) porque houvessem adquirido importância nacional, senão porque a adquiriram internacional. A rev[olução] constitucional não (foi) feita em favor da burguesia portuguesa, mas em favor da burguesia europeia. (Foi, portanto, um fenómeno extra-nacional.) Foi feita porque a instrução, afinal, alguma coisa progredira, as guerras napoleónicas alguma coisa haviam sacudido as populações (...) o Constitucionalismo foi feito pelo espírito da época contra a m[onarquia] absoluta, não pelo espírito português da época contra essa monarquia.
Vimos já que, em grande parte, o liberalismo foi um anti-catolicismo. Veremos agora que foi um anti-nacionalismo.
A única tentativa propriamente burguesa foi a "Maria da Fonte", que uma intervenção estrangeira dominou.
Sendo um movimento de necessidade nacional, mas não um movimento nacional , o c[onstitucionalismo], pela parte destrutiva, teve razão, pela parte construtiva não a teve. As torças destituídas estavam, de facto, incapazes de governar em Portugal; as que entraram a governar eram capazes de o fazer, mas não em Portugal. Havia outras, que devessem e pudessem governar? Não; não as havia; e a tragédia nacional era essa. Só a m[onarquia] podia governar; só ela, absoluta ou reformada. A monarquia não havia deixado medrar, politicamente, classe nenhuma; tinha-se tornado a única força política existente. Caída, não havia quem a substituísse, porque não havia classe capaz de pensamento político, porque não havia vida política viável em Portugal senão a mon[arquia] absoluta, e essa era inviável, já, num país europeu. Não havia classe com capacidade política; não havia portanto classe com capacidade reformadora. Ora quando uma reforma política se impõe, e não há classe (ou força) política capaz de a fazer, a reforma faz-se porque se impõe, mas faz-se por revolução. Uma revolução é uma reforma feita por classes incapazes de reformar. Onde não há senso político há senso revolucionário
Fê-la a burguesia e parte da aristocracia [?], porque era a única classe capaz de acção, foi uma revolução, porque essa classe, única capaz de acção, não era, por para tal não estar treinada, capaz de acção política. Sendo incapaz de acção política, não podia senão substituir à fórmula gasta uma fórmula estrangeira, pois lhe faltou o ímpeto [?] político país criar uma fórmula nacional.
Assim, o c[onstitucionalismo] acrescentou à decadência a desnacionalização. Teve, porém, duas vantagens: despertar a burguesia politicamente e, com as revoluções que fez e contra-revoluções que motivou, sacudiu o letargo nacional. As revoluções — as anarquias, mesmo — têm a sua hora histórica, a sua necessidade social; como as guerras o seu tempo e a sua vantagem [...] Não caiamos no conceito absurdo de que a ordem é sempre precisa; por vezes é precisa a desordem (...)
Quais foram, porém, os efeitos esperáveis da aplicação a um país de um sistema político inaplicável a ele, estrangeiro a ele, e por uma classe ineducada para governar? Por a classe ser ineducada para governar, ruína da administração; por querer governar reformando, ou seja sem capacidade de governar administrando, a derrocada e o caos político; por ter que governar com princípios estrangeiros a viciação do carácter nacional; por ter que governar inadaptadamente, a sua radicação em oligarquia — isto é, em minoria governante governando [...] fim da relação com as necessidades nacionais e as solicitações da continuidade governativa da vida pátria. Quando, porém, uma classe que obtém o poder passa a governar só negativamente e a construir só fortuitamente, sem apoio em nenhuma tradição, nem suporte em nenhuma força do povo, passa daí a pouco a governar só por governar; passando a governar só por governar, passa a governar só em seu proveito, primeiro político, depois pessoal. Um regime implantado nas condições de um constitucionalismo tem fatalmente que acabar por dar o que dará.
Diz (...), com razão, que os nossos presentes condutores têm sido quadrilhas de gatunos.
As causas, não nacionais mas gerais, que deram força à burguesia antes, e para, o c[onstitucionalismo], continuaram, no séc. XIX, a dar-lhe força. paralelamente, o c[onstitucionalismo] corrompia, e as classes médias caíram ou na indiferença ou na porcaria da política constitucional. Com o acréscimo da corrupção dos costumes, que modernamente se deu, ficou estragada de todo a classe em que se apoiava o c[onstitucionalismo]. E a instrução, alastrando o influxo das ideias estrangeiras, breve "alargaram" as classes políticas até elas abrangerem o povo — o povo das cidades, é claro — o proletariado pseudo-menos-inculto.
A tradição constitucional, ou liberal, preparara a "ideia" republicana que, de um ponto de vista, é apenas o C[onstitucionalismo] num nível mais baixo ou com uma maior amplitude de aderência — o liberalismo popular.
Renovou-se o fenómeno que se dera com a queda da velha monarquia. Da parte religiosa do problema já falámos; resta ver a parte exclusivamente política.
Toda a criatura sã, em Portugal, se afastava da política.
As massas populares, em parte bestializadas, em parte corruptas (...)
Deu-se a reacção. Mas quem reagia? Criaturas das mesmas classes que governavam. Criaturas, portanto, com a mesma hereditariedade, vivendo no mesmo meio que os governantes. Criaturas, portanto, moral e intelectualmente idênticas a eles, pois seria o maior dos milagres se, com idêntica hereditariedade e com idêntico meio fossem diferentes. Um ou outro reagia em virtude de [...] e carácter, de legítima e honesta indignação moral. Mas nenhum partido podia reagir senão corruptamente, porque, quando uma sociedade é corrupta, pode haver, e há, indivíduos que o não são; mas não há agrupamentos que o não sejam, ou, se os há, não podem ter acção social, pois só corruptamente se pode agir numa sociedade corrupta. Um partido político, a ser são, tende a não agir, o que é uma contradição com o próprio conceito de partido político; a agir, terá de se integrar nos modos de acção do meio, tinha, na expressão mais moral, que se adaptar ao meio. Pois, à medida que foi tomando forças, o partido republicano foi-se tornando mais corrupto. Era a sua condição de vitória — num meio corrupto, [...] com corruptos. É comparar os homens do [...] de Antero de Quental e M. de Araújo [?] com os safados de [...] e Afonso Costa e do abade Braz, que são os da geração da vitória republicana Os primeiros falham em 31 de Janeiro; os segundos vencem em 5 de Outubro. Eram os adaptados ao meio. E os que sobreviveram, [...], quantas vezes não preferiram haver morrido antes que tivessem de sofrer a alegria da vitória.
Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.
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