PREFÁCIO A QUARESMA [a]
PREFÁCIO A QUARESMA
É curioso como certos assuntos nos talham a mente conforme a sua natureza. Fui verdadeiramente amigo de Quaresma verdadeiramente me dói a saudade dele, mas ao escrever a seu respeito, assumo, sem querer nem sentir, como aliás sempre faço, a frieza de quem é o meu tema, e não consigo ter uma lágrima em prosa. A personalidade de Quaresma insinua-se no que escrevo meu estilo recusa-se a não ser frio.
O mais curioso é que essa individualidade apagada e mortiça, vivendo toda uma vida subjectiva de problemas objectivos, ganhava uma nova e milagrosa energia quando resolvia um problema, sobretudo um problema difícil. O Dr. Quaresma, normal, era um apenso débil à humanidade; o Dr. Quaresma, depois de decifrar, erguia-se num pedestal íntimo, hauria forcas incógnitas, já não era a fraqueza de um homem: era a força de uma conclusão. Não se transformava — não direi tanto –– mas transfigurava-se sem se transformar. Era o mesmo Quaresma, mas tinha o triunfo de ser o Almanaque de Lembranças do ano seguinte, já com o conceito das charadas.
Ficção e Teatro. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986
- 104.1ª publ. in A Novela Policial-Dedutiva em Fernando Pessoa . Fernando Luso Soares. Lisboa: Diabril, 1976