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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Quais são os factos de que podemos partir?

Quais são os factos de que podemos partir? Factos, que o parecem deveras ser, são cinco:

1. Que o Presidente Sidónio país foi assassinado.

2. Que foi assassinado por um homem chamado JJC, actualmente preso no GC.

3. Que esse homem viera recentemente de fora, de Faro ou de Beja.

4. Que se estabeleceu uma relação entre esse homem e M[agalhães] L[ima], G[rão] M[estre] da M[açonaria] Portuguesa, em vista de se provar que o assassino procurou M[agalhães] L[ima] uma ou mais vezes (isto é incerto) no hotel onde aquele estava, e tinha sobre si, quando foi preso, uma carta comprometendo aquele maçon.

5. Que o Presidente foi avisado do complot e de que por toda a linha estavam homens para o assassinar.

Destes factos temos que partir. Comecemos pelo mais nu, pelo mais simples, pelo facto de que o Presidente foi assassinado.

Tratando-se de um homem público, e, sobretudo, de um Presidente da República, a questão abre-se em duas hipóteses: se foi assassinado por uma razão individual, se por uma razão política. Como se tratava, evidentemente, de um complot, trata-se, evidentemente de uma razão política. Repare que eu não trago para o caso a tentativa anterior, em Belém, e trago os indicados complots pela linha fora. É que não sei se o primeiro caso tem relação com o assassínio, mas sei que os complots pela linha fora forçosamente têm.

Posto isto — que o Presidente foi assassinado por uma razão política — perguntemos: quantas são as razões políticas (e, aliás, individuais mesmo) que podem levar a matar um homem? São, evidentemente, duas: a vingança ou ódio, e o cálculo ou noção de proveito.

Suponhamos que o Presidente foi morto por ódio, isto é, por vingança. Nesse caso, como ele dominou uma revolta democrática, como dominou um levantamento bolchevick, e como indispôs consigo (ao que parece) a Maçonaria, de uma de estas agremiações ou grupos devia ter partido o crime, se o intuito foi de ódio. Como se estabeleceu uma relação, imediatamente, entre o criminoso e o Chefe da Maçonaria portuguesa, comecemos por examinar se seria a Maçonaria quem armou o assassino.

Que factos nos surgem tendentes a levamos a essa suspeita? Que o criminoso tinha na algibeira qualquer papel ou carta referindo-se a ML, e que diversas vezes procurou (quer falasse ou não) a esse maçon, no hotel onde este estava hospedado.

Salta imediatamente aos olhos do raciocinador a excessiva evidência desta prova. Uma sociedade secreta que quisesse mandar matar um chefe de estado, ou outro homem que fosse, decerto não se lembraria — tendo tão extensas ramificações, tantas lojas e outras coisas — de comunicar com esse homem, primeiro, através de um seu membro ostensivo e conhecido como tal, segundo, através nem mais nem menos do que do seu grão-mestre, terceiro, através do seu grão-mestre quase em público, mediante entrevistas em um hotel, com todo o múltiplo testemunho de criados e outros hóspedes. Tal procedimento envolveria um grau de estupidez inconcebível e inconciliável com qualquer plano, sobretudo quando se considera que, por todos os relatos, o criminoso parece ser um indivíduo extraordinariamente astuto. Tal procedimento só seria explicável em duas hipóteses: a de que o criminoso com certeza não seria descoberto ou preso (o que seria absurdo ter como fatal), ou que, descoberto, não trairia essas relações com ML, o que era tão pouco certo que foi precisamente o contrário que aconteceu, encontrando-se logo uma carta que estabeleceu relação entre ML e ele. E em nenhuma destas hipóteses, mesmo, se justificaria que uma associação que tem todos os meios de encontro secreto ao seu dispor, expressamente fosse tornar públicas, pelo lugar , as entrevistas do G[rão] M[estre] com o assassino.

Os próprios factos, portanto, pelos quais se pode suspeitar da Maçonaria, revelam, quando analisados, que com certeza não foi a Maçonaria, ou, pelo menos, a Maçonaria de que ML é GM, que armou o assassino do Presidente.

Mas, se não foi a Maçonaria, então as insistentes vezes que o criminoso procurou ML, a carta que tinha na algibeira estabelecendo uma relação entre si e aquele, assumem um aspecto especial. Se um certo número de factos apontam directamente para alguém, evidentemente para alguém, e, ao mesmo tempo, analisados, demonstram que esse alguém nada tem com eles, a conclusão fatal é que houve intenção de estabelecer esses factos para implicar, para lançar suspeitas sobre esse alguém. Temos, pois, já algum caminho andado na nossa análise: estabelecemos, 1º que a Maçonaria não é culpada do assassínio do Presidente, 2º que quem é deveras culpado desse crime tentou arranjar de tal modo as coisas que a suspeita caísse sobre a Maçonaria.

Chegados a esta conclusão, estamos habilitados a eliminar imediatamente o partido democrático do número dos suspeitos. Porque, sendo admissível que o partido democrático, vencido pelo Presidente, buscasse, por vingança e ódio, assassiná-lo, sendo admissível que, buscando-o, tentasse desviar as suspeitas para cima de outro grupo ou entidade, o que não é admissível é que escolhesse para essa entidade expiatória a Maçonaria, que toda a gente sabe, ou supõe, ser simpática ao partido democrático, como ele a ela, e caindo uma suspeita sobre quem imediatamente envolveria também os democráticos.

A análise dos factos permite-nos, pois, eliminar a Maçonaria e o p[artido] d[emocrático] como culpados do assassínio do Presidente.

Resta ver se essas culpas devem logicamente cair sobre os homens dos soviets, sobre os bolchevicks de cá ou de toda a parte.

s.d.

Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.

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