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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Álvaro de Campos

ODE MARCIAL

ODE MARCIAL

Inúmero rio sem água — só gente e coisas,

Pavorosamente sem água!

Soam tambores longínquos no meu ouvido,

E eu não sei se vejo o rio se ouço os tambores,

Como se não pudesse ouvir e ver ao mesmo tempo!

Helahoho! helahoho!

A máquina de costura da pobre viúva morta à baioneta...

Ela cosia à tarde indeterminadamente...

A mesa onde jogavam os velhos,

Tudo misturado, tudo misturado com corpos, com sangues,

Tudo um só rio, uma só onda, um só arrastado horror.

Helahoho! helahoho!

Desenterrei o comboio de lata da criança calcado no meio da estrada,

E chorei como todas as mães do mundo sobre o horror da vida.

Os meus pés panteístas tropeçaram na máquina de costura da viúva que mataram à baioneta

E esse pobre instrumento de paz meteu uma lança no meu coração.

Sim, fui eu o culpado de tudo, fui eu o soldado todos eles

Que matou, violou, queimou e quebrou.

Fui eu e a minha vergonha e o meu remorso com uma sombra disforme

Passeiam por todo o mundo como Ashavero,

Mas atrás dos meus passos soam passos do tamanho do infinito.

E um pavor físico de encontrar Deus faz-me fechar os olhos de repente.

Cristo absurdo da expiação de todos os crimes e de todas as violências,

A minha cruz está dentro de mim, hirta, a escaldar, a quebrar

E tudo dói na minha alma extensa como um Universo.

Arranquei o pobre brinquedo das mãos da criança e bati-lhe.

Os seus olhos assustados do meu filho que talvez terei e que matarão também

Pediram-me sem saber como toda a piedade por todos.

Do quarto da velha arranquei o retrato do filho e rasguei-o.

Ela, cheia de medo, chorou e não fez nada...

Senti de repente que ela era minha mãe e pela espinha abaixo passou-me o sopro de Deus.

Quebrei a máquina de costura da viúva pobre.

Ela chorava a um canto sem pensar na máquina de costura.

Haverá outro mundo onde eu tenha que ter uma filha que enviuve e a quem aconteça isto?

Mandei, capitão, fuzilar os camponeses trémulos,

Deixei violar as filhas de todos os pais atados a árvores,

Agora vi que foi dentro de meu coração que tudo isso se passou,

E tudo escalda e sufoca e eu não me posso mexer sem que tudo seja o mesmo.

Deus tenha piedade de mim que a não tive de ninguém!

s.d.

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).

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