Um ente, ou Eu, qualquer existe essencialmente porque se sente,
Um ente, ou Eu, qualquer existe essencialmente porque se sente, e sente‑se porque se sente distinto de outro, ou de outros.
Cada ente, visto que é o que é por natureza, e por natureza sente que o é, tende a sentir‑se o que é o mais completamente possível; e, como o que se sente, o sente através de distinguir‑se dos outros, e, portanto, de estar em relação com outros, para sentir‑se o que é o mais completamente possível, deve sentir‑se o que é o mais relativamente, ou relacionadamente, possível.
Para se sentir o que é o mais relativamente possível, força é que seja o mais relativo ou relacionado que pode ser, e que seja assim relativo ou relacionado com a maior perfeição, ou intensidade, possível. Quer isto dizer que, para um ente se sentir o mais possível a si‑próprio (o que quer dizer, para ser o mais possível ele‑próprio) tem que sentir o mais absoluta e puramente possível a sua Relação. Ora a Relação só é absoluta quando é com Todo o Relacionável, e só é inteira ou pura quando com cada relacionável é o mais possível, e o mais possível será o mais puramente possível.
Assim, para se sentir puramente Si‑próprio cada ente tem que estar em relação com todos, absolutamente todos, os outros entes; e com cada um deles na mais profunda das relações possíveis. Ora a mais profunda das relações possíveis é a relação de identidade. Por isso, para se sentir puramente si‑próprio, cada ente tem que sentir‑se todos os outros, e absolutamente consubstanciado com todos os outros.
Ora isto não pode implicar fusão (de qualquer espécie) com os outros, pois assim o ente não se sentiria a si‑próprio: sentir‑se‑á não‑si‑próprio, e não si‑próprio‑outros. Para não deixar de ser si‑próprio, tem que continuar a ser distinto dos outros. Como, porém, nessa altura do relacionar‑se, os outros são outros‑ele, para ser distinto dos outros, ele tem que ser distinto dos outros‑ele. Ser distinto dos outros‑ele só pode dar‑se sendo ele distinto de si‑mesmo.
Para ser distinto de si‑mesmo sem ser outros, porque nesse caso não seria ele‑mesmo, nem ser ele‑mesmo, pois então não se distinguiria, ele tem que ser nem outros nem ele‑mesmo, ele tem que ser a Essência de outros e de ele‑mesmo, porque assim, sendo essência d’ele mesmo, de si‑mesmo se distingue — como as próprias palavras, em que isto se diz, distinguem —, e sendo essência comum d’ele e de outros não se distingue dos outros, ou antes se indistingue dos outros pelo próprio processo por que se distingue de si‑mesmo.
Como, porém, o qe há de comum entre ele e os outros é a Relação — porque pela Relação é que eles podem fundir‑se ou entreser‑se, e pela relação é que eles se distinguem — segue que é pela Relação que ele se distingue de si‑mesmo. Este si‑mesmo, porém, está, nesta altura metafísica, já indistinto de outros, essa Relação, pela qual ele se distingue de si‑mesmo, é a relação consigo‑mesmo. A esta relação chama‑se Identidade.
Ora, se um ser é tanto mais ele‑próprio quanto mais pura e abstractamente é ele‑próprio, e ele‑próprio é fundamentalmente, como se viu, a Relação consigo‑mesmo, segue que será tanto mais puramente ele‑próprio quanto mais pura for essa relação consigo‑mesmo.
Ora, como a mais pura Relação é, como já se viu, a pura identificação, a mais pura relação de um ser consigo mesmo será (não a identificação absoluta, pois essa seria a pura não‑relação) mas o consistir a essência desse ente em ser Relação Pura, não sendo esse ente mais que Relação abstracta.
Ora se a Relação Pura, Abstracta, é que é a essência do ente, e se o ente puro é o ente puramente distinto de si‑mesmo, segue que o ente puro é a Relação Pura puramente distinta de si‑mesma.
Ora relação implica distinção. Temos, pois que a Relação pura puramente distinta de si‑mesma será uma pura distinção puramente distinta de si‑mesma. A distinção pura, porém, é já, por o que é, puramente distinta, visto que é a distinção pura. Por isso a Relação Pura, só por ser a Relação Pura, é pura distinção. Mas se é por isso que é pura distinção, segue que é pura distinção por ser pura identidade, pois que é pura distinção por ser puramente aquilo que é (que é Relação Pura). De aqui se conclui que pura identidade e pura distinção são a mesma coisa; isto é, que a Identidade é a mesma coisa que a Distinção.
Um ente qualquer é, pois, essencialmente identidade que é distinção.
Textos Filosóficos . Vol. I. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968 (imp. 1993).
- 36.