É , porém, um facto curioso que a religião e a ciência têm a mesma base...
É , porém, um facto curioso que a religião e a ciência têm a mesma base — a intuição determinista. A noção de lei é fundamental na ciência, e na mentalidade científica; sem que haja uma noção de lei, nem pode haver ciência, nem quem busque fazer ciência.
Mas esta mesma noção do determinismo é que é o fundamento da religião; porque a religião não passa na essência, do reconhecimento de que a vida, a acção, tudo quanto somos e representamos, não tem origem ou explicação em nós mesmos, mas está nas mãos de um poder ou poderes desconhecidos.
Paralelamente, porém, ao reconhecimento da existência do uma força superior a ele, o homem nota, também, que a acção dessa força, no que se refere às ideias morais e outras (que ele tira da sua vida social), é absurda por vezes, outras vezes injusta, frequentemente inexplicável. O que acontece é por vezes imoral; morre o justo ante o pecador, e a astúcia vale mais que a honestidade muitas vezes. Mas isto acontece umas vezes, e outras o contrário; difícil é determinar qual a lei oculta a que tudo isso obedece. Por isso a religião espontânea da humanidade reconhece que, como há motivos desencontrados e absurdos provindos da complexidade, na vida, assim deve haver, governando-nos, não uma só presença, mas várias; e os mais lógicos entre os Homens reconhecem que essas várias presenças, que nos regem, como não são limitadas na sua regência (?) e contudo produzem por vezes efeitos imorais para nós, e por certo injustos frequentemente, ou têm uma moral diferente da nossa, ou moral nenhuma, ou são, como nós, susceptíveis de caprichos e de volubilidades. Tal a doutrina pagã, que, completada, reconhece, porém, mais alguma coisa. Assim como nós agimos e supomos que produzimos a acção, mas, pensando bem, reparamos na nossa servitude, e que a acção que agimos não é nossa mas produzida, assim chegamos a crer que essa acção das presenças superiores não emana exclusivamente deles, mas de qualquer outra presença, que os governe. E, assim, a lógica do paganismo concebe, e bem, que o Destino se oculta por detrás, e interiormente, à acção dos homens e dos deuses.
A ideia cristã, de que há um Deus supremo moralmente caracterizável, e presenças intermédias de várias espécies, primordialmente os anjos, é menos lógica que a ideia pagã. Pondo acima de tudo (no lugar de Deus no cristianismo) o Destino, o pagão reconhecia que o que temos que ter por superior a tudo é a Lei, mas a Lei nem moral nem imoral, nem caracterizável nem não, simples força a que se não pode resistir, compulsão contra a qual não há revolta e da qual não há apelo.
Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968.
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