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Arquivo Pessoa

OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Bernardo Soares

Motiva o aparecimento desta Revista rigorosamente singular...

Motiva o aparecimento desta Revista rigorosamente singular o episódio verbal que, embora se nunca tivesse dado, passo a narrar com exactidão. Ele contém mais lições, para toda a gente, que aquela que, particularmente me competindo, me apressei em aproveitar.

Jantava eu, em companhia de dois amigos, que designarei por B e C por não ter inventiva de nomes, em um dos restaurantes que o Destino permite que sejam usados pelo aspecto económico da inteligência abstracta. Na mesa a nosso lado, jantava tardando um constante da casa, conhecido de mim menos pelo nome que pelas profissões. Era chefe de família e contabilista (guarda-livros).

Eu e meus dois amigos, entretidos no prazer de uma conversa íntima, empregámos esse prazer na descrição alternada do desprazer da vida. É sempre agradável falar do que é desagradável. Assim se passou o tempo e com ele aquela parte da vida que esse tempo nos levou.

Não sei qual foi a ocasião de, em desvio da conversa suspensa, eu me dirigir, por qualquer fragmento de frase, ao demorado da mesa ao lado. Ele respondeu qualquer coisa que me custa agora a imaginar. Cheguemos ao ponto necessário. A certa altura ele disse:

— Vejo que o sr. Pessoa e os seus amigos estão desgostosos com a vida. Tem graça que se queixam dela mas não se queixam do que se queixam dela. (É escusado dizer que esta frase é absolutamente impossível em qualquer conversa, inclusive na minha). E isso — é curioso — é simplesmente por uma razão — por não serem contabilistas por não aplicarem a contabilidade à vida...

Virámo-nos para ele com certo pasmo. E eu perguntei:

— Mas o ser contabilista livra das tristezas da vida?

— Não livra de tristezas nenhumas, nem da vida nem das outras. Mas habilita a compreender porque se está triste, que é o que a maioria dos tristes nunca logra compreender e é por isso que são alegres. E, como nunca logra compreender, não consegue nunca perceber como há-de livrar-se de tal tristeza. Contabilizar as tristezas, como, aliás, as alegrias, é um dever intelectual, e como os deveres intelectuais — ao contrário dos deveres morais — devem sempre ser cumpridos, eu ouso lembrar que haveria toda a vantagem em os sabermos cumprir.

Respirei fundo, até à inteligência, e respondi:

— Todas as pessoas, como eu e os meus amigos, quando estão, como com efeito estamos, desgostosos da vida, contamos com ler e beber melhor. Ora, consumado esse aspecto do [...], o cérebro não tem aquela habilidade de compreender o incompreensível que distingue o homem normal, e dá em resultado todas as religiões e todas as políticas. Gostava por isso que o meu amigo nos dissesse [...] precisamente por que calhas a contabilidade se infiltra na avidez de descoberta do homem.

O contabilista sorriu sem retórica.

— Isso tem espírito? perguntou o contabilista.

— Não sei, respondi com verdade. Tem pelo menos boa-vontade.

(...)

— Que idade tem o sr. Pessoa?

— Trinta e nove, respondi com uma hesitação dorida do pudor natural ao facto.

— E há quanto tempo é que escreve?

(...)

— Há em todos nós uma tragédia enorme, interrompi eu inesperadamente... Também tenho a minha. Tenho um pensamento masculino e uma sensibilidade feminina, e não consegui ainda o casamento entre eles, isto é, entre ele e ela.

Despertando assim os presentes continuei:

(...)

— A contabilidade não é um fenómeno exclusivamente comercial e industrial, isto é, aplicável ao comércio e à indústria. E, na realidade, a repercussão nas coisas humanas do princípio científico, de que tudo, que é susceptível de ciência, é reduzível a números, ou, se preferirem susceptível de medida.

(...)

— Tudo isso está muito bem, respondi; aceito perfeitamente que a contabilidade seja isso tudo. E confesso que, expostas desse modo as suas funções e préstimos, a vejo como uma coisa muito mais interessante do que me parecia quando eu estava desamparado da sua explicação. O que lhe objecto, porém, meu amigo, é que, para uma coisa ser reduzível a números, é preciso, antes de mais nada, que seja reduzível a números. As coisas do comércio e da indústria sem dúvida que o são. Mas o senhor não falou do comércio e da indústria: referiu-se ao meu descontentamento da vida, e ao descontentamento da vida destes meus amigos. Ora, ou o senhor partiu do princípio que esses descontentamentos eram todos eles devidos a uma causa financeira, estilo sinal menos, e nesse caso, desculpe-me que lhe diga — a afirmação não é, pelo menos no momento presente, verdadeira; e, ainda que o fosse, não era com certeza interessante — ou realmente o senhor entende qualquer outra coisa, com verdadeiro sobressalto e novidade, e é isso que gostaria de ouvir, com o fim de depois narrar esta conversa por escrito, como é costume fazer em literatura a todas as conversas, mais ou menos íntimas e confidenciais, ainda que se não tenham dado.

— Não me fez senão justiça, respondeu o guarda-livros. Eu não caí na grosseria de atribuir uma causa financeira ao descontentamento de qualquer dos senhores; se a atribuísse não a atribuiria. Quero dizer que o vosso descontentamento, seja qual for a causa, é reduzível a um esquema comum; e quero dizer, mais, que se a causa a pressupor não é aparente, esse esquema numérico a tornará aparente, logo que seja aplicado.

— Isso é realmente curioso, disse B. Mas qual é o processo de fazer essa contabilidade especial?

— O processo é o mesmo para todas as coisas, a regra é a mesma. Por isso, o melhor é vir o processo atrás da sua explicação. Quer dizer, o melhor é explicar por um exemplo. Servirá um dos senhores, se a isso se quiser prestar. Qual dos três quereria servir de demonstração? A única condição que ponho é que me forneça dados certos. Sem dados certos chegamos forçosamente a conclusões erradas. Hão pois de responder francamente às perguntas que fizer. Não há que recuar: as perguntas não são tão íntimas que (...)

(...)

— Está bem, disse eu. Servirei eu de exemplo. Vamos lá a ver como me contabiliza o descontentamento. Estou à sua disposição. Pergunte.

s.d.

Livro do Desassossego. Vol.I. Fernando Pessoa. (Organização e fixação de inéditos de Teresa Sobral Cunha.) Coimbra: Presença, 1990.

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